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 | Enrico Nawrath/Divulgação Festival de Bayreuth
| Foto: Enrico Nawrath/Divulgação Festival de Bayreuth

Regietheater” (do alemão, “teatro de diretor”) é a prática de se alterar significativamente as óperas de acordo com a vontade do diretor. Essas mudanças podem ocorrer realocando a história de sua época original para um período moderno, modificando o roteiro original, inserindo elementos abstratos no design de palco, misturando trajes de épocas diferentes, criando conflitos de gênero, classe ou raça e enfatizando o sexo ou a violência.

Imagine um Rigoletto passado no Planeta dos Macacos, um Oreste representado num beco imundo, cheio de grafitti, com cenas tarantinescas de banho de sangue, um beijo gay entre Siegfried e Gunther ou O Rapto do Serralho contendo masturbação, micção fetichista, sexo oral forçado e esquartejamento. Todos os exemplos neste artigo são reais.

O Regietheater é a corrupção da ópera, o apogeu do grotesco, a deturpação total das concepções originais de compositores e libretistas, sob o jugo de stage designers e diretores inaptos, ignorantes e politicamente mal-intencionados.

Em 1951, a Alemanha vivia o trauma do pós-guerra e buscava rechaçar todos os símbolos nacionalistas que remetiam ao nefasto nacional-socialismo. Quando o Festival de Bayreuth, um tradicional centro de difusão da música de Richard Wagner, retomou suas atividades, Wieland Wagner, neto do grande compositor, optou por abrir mão das montagens naturalistas da concepção original do avô, substituindo-as por efeitos minimalistas de luz e sombra, influenciado pelas ideias de Adolphe Appia e Max Reinhardt.

O Regietheater é a corrupção da ópera, o apogeu do grotesco, a deturpação total das concepções originais de compositores e libretistas

A transgressão escatológica ocorreu realmente nos anos 60 do século 20, com os movimentos estudantis violentos e o triunfo da cultura adolescente que ainda hoje nos assombra. Apesar de suas motivações compreensíveis, Wieland Wagner acabou abrindo a porta para os abusos nas alterações das óperas futuramente, frutificando na Guerra Fria entre a geração hippie pós-Vietnã, aí, sim, já carregado de doutrinação ideológica esquerdista.

A inocente filha do capitão, em O Navio Fantasma, tinha então pôsteres de Che Guevara em vez do retrato do misterioso Holandês Voador. A montagem de O Morcego era descrita literalmente como “uma crítica esquerdista à política austríaca regada a cocaína, sexo e violência”.

“Existe uma preguiça intelectual considerável na ideia de que o passado deve ser problematizado e que os trabalhos mais antigos devem ser ‘resgatados’ de seus pressupostos ideológicos. Olhando para a bagunça extraordinária que o mundo está, você pode supor que os nossos pressupostos ideológicos é que são inerentemente falhos, e que, na verdade, podemos tirar lições morais úteis do passado”, escreveu o escritor e crítico musical da revista The New Yorker Alex Ross. De fato, foi o sequestro da ópera pela mentalidade de esquerda que fez de Don Giovanni um idiota repulsivo que se masturbava e se enchia de fast food e drogas, cercado por psicóticos, pervertidos e prostitutas, chegando ao ridículo de caracterizar os romanos e nobres de Händel com óculos de sol e câmeras de vídeo, gingando como rappers ao som das delicadas melodias barrocas.

Se na Europa esse fenômeno é hegemônico, nos Estados Unidos ele teve um pouco menos de peso, principalmente depois de a New York Metropolitan Opera perder alguns milhares de assinantes ao sugerir que estava descambando para a ópera deturpada. Na Europa, onde a ópera é altamente financiada pelo Estado, o Regietheater foi conquistando a hegemonia, enquanto na América, onde dependia do público, perdeu força, fazendo valer a advertência feita por Hector Berlioz muito antes do Regietheater: “Vocês, músicos, poetas, escritores de prosa, atores, pianistas, regentes e diretores, seja de terceiro, segundo ou mesmo primeiro escalão, vocês não têm o direito de intrometer-se com um Shakespeare ou um Beethoven, a fim de conferir-lhes as bênçãos do seu conhecimento e gosto”.

Do mesmo autor: O lixo cultural está matando a verdadeira cultura brasileira (18 de fevereiro de 2018)

Leia também: O papel da música na formação escolar da criança (artigo de Leila Sugahara, publicado em 16 de fevereiro de 2014)

Não se trata de proibir ou censurar as montagens alternativas. Muitas são de bom gosto e bastante coerentes. Seria extremamente maçante imaginar as óperas, cujo repertório básico abrange 150 títulos, sendo montadas exatamente iguais. O problema é a deturpação e mutilação das criações originais, quase sempre motivadas pela desconstrução ideológica da beleza e da ordem e a aversão ao passado, de acordo com a cartilha pós-moderna.

A soprano alemã Diana Damrau, quando questionada sobre sua participação na infame montagem de Rigoletto da Baviera State Opera, comentou com desdém: “Cumpri o meu contrato. Aquilo era lixo superficial”. O regente Yuri Temirkanov abandonou a produção da Dama de Espadas na Ópera de Lyon em 2003. “Eu não seria capaz de viver com a minha consciência se conduzisse esse lixo”, disse ele ao diretor-geral.

Em 2004, durante os ensaios para a estreia de O Rapto do Serralho, os membros da Komische Oper Berlim quase se amotinaram e a produção se livrou de uma ameaça de greve só depois de negociações raivosas com Calixto Bieito, o diretor mais ofensivo na Europa atualmente. “Tal coisa não merece ser vista no nosso palco, ou em qualquer palco”, disse um membro do coro. O público da noite de abertura compartilhou a revolta dos músicos: “Mozart não pretendia isso!”, gritaram os manifestantes.

Porém, no geral, essas críticas ainda são raras. Muitos músicos não criticam por medo de perderem trabalhos e serem tachados de obstrucionistas. Assim, o Regietheater segue hegemônico, fartamente financiado com dinheiro estatal e protegido por uma aliança espúria entre diretores, críticos e acadêmicos. O público, que seria o último baluarte contra tais abusos, tem pouca influência, graças aos subsídios estatais que compensam a fraca bilheteria dessas produções.

Em poucas décadas, o Regietheater destruiu o que a humanidade levou séculos para construir. Ao mutilarem as obras originais de libretistas e compositores, seus diretores fecharam portas preciosas, negando não só o conhecimento, mas a sublime experiência estética da ópera às novas gerações, tornando-a grotesca e repugnante, afirmando, mais do que nunca, a mentalidade solipsista e arrogante atual, que prega uma imaginária superioridade moral e intelectual dos moderninhos sobre os mestres do passado.

Tom Martins
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bacharel em Composição e Regência, é maestro da OFSSP, compositor e instrumentista.
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