• Carregando...
 | Jewel Samad/AFP
| Foto: Jewel Samad/AFP

Allahu akbar”: em árabe, “Deus é grande”. Os muçulmanos, tribo excêntrica com mais de 1 bilhão de membros, repetem a frase várias vezes nas cinco orações diárias. A frase é também uma maneira conveniente de expressar gratidão na medida exata em qualquer situação.

Eu a uso em voz alta mais de 100 vezes ao dia; dias atrás, por exemplo, eu a repeti em diversas ocasiões ao longo da minha oração Isha, tarde da noite. Pouco antes, no jantar, também a usei, de boca cheia, depois da primeira mordida no meu suculento kebab de frango halal. À tarde, pronunciei-a mais uma vez, em uma sala de reuniões lotada do Departamento de Estado, onde fora convidado a falar aos funcionários sobre o poder da contação de histórias. Mais especificamente, expressei minha eterna gratidão pela eleição de Barack Obama, a quem, em brincadeira jocosa com a paranoia islamofóbica que o cercava, chamei de “nosso primeiro presidente muçulmano-americano”, acrescentando a expressão para finalizar.

O pessoal na plateia riu e aplaudiu, o mundo continuou a girar, ninguém teve um aneurisma e apenas alguns pareceram questionar, com as sobrancelhas arqueadas à la Sarah Sanders, “Peraí, mas ele...?”. Confesso até ter dito “Allahu akbar” há dois dias, no banheiro, depois de perder a batalha, mas no fim ter ganhado a guerra, contra uma tremenda virose estomacal.

É fácil esquecer que é comum ver a linguagem sequestrada e servir de arma para extremistas violentos

Tenho 37 anos. Durante todo esse tempo, eu, como a imensa maioria dos muçulmanos, jamais disse “Allahu akbar” antes ou depois de cometer um ato violento. Infelizmente, não é o caso de terroristas de grupos como o Estado Islâmico, a Al Qaeda e seus simpatizantes, que representam uma fração minúscula dos islâmicos. No imaginário coletivo, isso deu à expressão um significado impossível de se conciliar com o que ela representa no meu dia a dia.

Allahu akbar” está nas manchetes novamente porque o sujeito de 29 anos que jogou uma caminhonete alugada sobre uma ciclovia, matando oito pessoas e ferindo mais de dez em Manhattan, na última terça, supostamente a teria dito após o ataque. Meu coração ficou pequeno quando ouvi a cobertura ao vivo do caso, pontilhada com informações fornecidas para tentar nos ajudar a entender a tragédia: a descrição física do suspeito, o tipo de veículo que dirigia, as testemunhas, ainda perplexas, dizendo que não parecia, de maneira alguma, ter sido acidente. E as duas palavras que a polícia disse que ele gritou quando o ato inimaginável se viu concluído: “Allahu akbar”.

O ataque é semelhante ao ocorrido em Charlottesville, na Virgínia, em agosto, quando o neonazista James Alex Fields jogou o carro contra a multidão que protestava contra uma marcha de nacionalistas brancos, matando Heather Heyer, 32 anos, e ferindo 19 pessoas. Trump defendeu sua reação inicial, culpando a violência “cometida de todos os lados”, afirmando: “Levará algum tempo para confirmarmos os fatos”. Só que a mesma prudência não parece se aplicar quando os suspeitos são descritos pelas testemunhas como sendo “do Oriente Médio”, e menos ainda se um deles disser “Allahu akbar”.

Leia também: O Islã verdadeiro (artigo de Omar Nasser Filho, publicado em 20 de junho de 2016)

Opinião da Gazeta: O terrorismo e os valores ocidentais (editorial de 19 de agosto de 2017)

Pouco depois do horror de Charlottesville, extremistas jogaram outro veículo em cima de uma multidão, dessa vez em Barcelona, matando 16 pessoas. Em questão de horas, lá estava Trump repetindo um mito há muito desmascarado, estimulando aqueles que querem combater o terrorismo a “estudar o que o general Pershing fez aos terroristas que foram pegos” – ou seja, matando-os a tiros com balas sujas de sangue de porco. “Não houve mais terror islâmico radical durante 35 anos!”, ele tuitou. Permitam-me aqui esclarecer que não é preciso mergulhar a munição em sangue suíno para nos matar. As balas comuns têm o mesmo efeito. Por quê? Por sermos humanos.

É por isso que doeu quando, na terça, “Allahu” e “akbar”, essas duas palavras tão preciosas para nós, deram o tom de toda a cobertura jornalística e da resposta presidencial – uma frase comum, bem-intencionada, usada diariamente pelos muçulmanos, especialmente durante as orações, que hoje é entendida como um código para “Foi terrorismo”.

É fácil esquecer que é comum ver a linguagem sequestrada e servir de arma para extremistas violentos. Alguns gritam “Allahu akbar”, mas outros preferem “tradição”, “cultura” e “orgulho branco”. O slogan preferido de um assassino na verdade não é nada para aqueles que perdem a vida ou suas famílias, mas faz uma diferença enorme para o entendimento coletivo dos norte-americanos da tragédia.

Pena que o furacão que arrasou Porto Rico não tenha gritado “Allahu akbar”, gerando reação rápida e eficaz

Em questão de horas após o ataque em Manhattan, Trump tuitou: “Acabei de pedir à Segurança Interna que intensifique ainda mais o critério de veto, já bastante rigoroso. Tudo bem ser politicamente correto, mas não para isso!” Também afirmou, na terça, que encerrará o programa de loteria de vistos de diversidade que, segundo as autoridades, permitiu ao autor do atentado entrar no país. É o tipo de reação que não se viu, em momento algum, em relação ao controle de armas, após o recente massacre ocorrido em Las Vegas.

Pena que o furacão que arrasou Porto Rico, deixando cidadãos norte-americanos desesperados com a falta de energia, comida e água potável, não tenha gritado “Allahu akbar”, gerando esse tipo de reação rápida e eficaz. Talvez assim nosso presidente pudesse ter visto a tempestade como algo ruim; quem sabe assim teria se insuflado pela fúria “nós contra eles” e insistido em uma ação rápida para reparação dos danos.

Na quarta à noite, enquanto os repórteres não paravam de repetir a frase que o suspeito teria repetido, levei meus filhos para dar uma volta pelo subúrbio da Virgínia atrás de doces ou travessuras. Andamos pelas ruas cheias de vizinhos da maior diversidade, simpáticos, e hordas de crianças animadas, fantasiadas e com saquinhos de guloseimas nas mãos. Meu filho de 3 anos foi de pirata e a minha menina de 1, Supergirl. Trocamos sorrisos e doces com estranhos de coração aberto, sem medo. Allahu akbar. Deus é grande.

Wajahat Ali é dramaturgo e advogado.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]