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Um dos pesadelos orwellianos, em seu livro 1984, na perspectiva de totalitarismos que haveriam de governar o mundo, era a ameaçadora máquina “big brother”, que a todos vigiava. Se com o advento da internet o presságio de Orwell se deu ao contrário, com a rede a serviço da liberdade, verifica-se agora uma segunda onda, em que direitos são solapados pela tecnologia a serviço da espionagem de Estado.

Aos poucos, reproduz-se nas cidades o mesmo ambiente estressado de aeroportos

Trata-se de reação ao terrorismo fundamentalista, com democracias restringindo a privacidade e as garantias fundamentais, interferindo no ciberespaço, outrora plataforma sem limites da liberdade e do livre dizer. Na França, inclusive, com a aprovação de recente lei antiterror, nos moldes do Patriot Act americano, instaura-se a espionagem por mero arbítrio policialesco, de natureza administrativa, a dispensar a atuação de juízes e de tribunais. É a vitória transversal do terrorismo, que impõe sua agenda, com a erosão de princípios e de garantias constitucionais. O recente projeto de Hollande, uma verdadeira Guantánamo informática, com varredura de telefones, correios eletrônicos e de redes sociais, além da proliferação de câmeras espiãs, torna a todos suspeitos até prova em contrário. Às favas a cultura política iluminista, precursora dos direitos do homem e do cidadão.

A draconiana lei, com apoio fácil no Legislativo, conta com respaldo da sociedade, como era previsível. Fragilizada pelo jihadismo e sob impacto de atentados, em verão de angústia e de medo, com soldados a misturarem-se com naturalidade aos turistas que palmilham Paris e seus encantos, a população se adequa ao plano de emergência denominado Vigipirate. Aos poucos, reproduz-se nas cidades o mesmo ambiente estressado de aeroportos, a confrontar vigilantes ameaçadores e suspeitos potenciais – que todos passam a ser, no bojo da lucrativa indústria da prevenção.

Toda essa dinâmica deriva da exaustão da política europeísta, incapaz de lidar com ameaças terroristas agudizadas pela avalanche de imigrantes que se precipita sobre o Velho Continente, apenas com as armas da democracia. Não apenas na França governos são inermes diante do êxodo de refugiados que se acentua e inunda até o Eurotúnel, sem poupar a disciplinada Áustria, com o carregamento de imigrantes mortos encontrados no caminhão abandonado. É como se a Europa fosse agora constrita a pagar pelos pecados do colonialismo, em uma trágica conta que demorou, mas chegou.

No caso da França, com a nova lei que amplia poderes da polícia, por certo é possível afirmar que o governo sai mais fortalecido. Por outro lado, no entanto, resta patente que a cidadania se fragiliza. Por maior que seja a banalização do mal que o terrorismo representa, a mera admissão da violência do bem, ainda que com boas intenções, será sempre lamentável homenagem que a civilização presta à barbárie.

Jorge Fontoura, doutor em Direito Internacional, é analista de politica externa e de questões internacionais.
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