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| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo

Curitiba tardou a aderir a um modelo de prestação de serviços de saúde muito difundido Brasil afora, o das organizações sociais (OSs). Essa adesão, entretanto, foi interrompida por decisão judicial liminar, que suspendeu o processo de chamamento público que visava a credenciar, perante a prefeitura, entidades sem fins lucrativos como OSs. Tanto a pretensão municipal de prestação de serviços de saúde por meio de OS como a decisão judicial que suspendeu tal pretensão trazem à tona alguns temas que parecem ainda não estar maduros nas mentes dos administradores públicos e das instâncias de controle.

Os motivos que levaram o Judiciário a suspender o chamamento público foram a não demonstração de insuficiência das disponibilidades estatais para garantir a cobertura assistencial à população (com base no artigo 24 da Lei Orgânica do SUS – LOS); e a fragilidade dos estudos que demonstraram que a prestação de serviços de saúde por OSs é a solução que melhor atende ao interesse público envolvido. Tais razões suscitam três questões relevantes: a prestação de serviços de saúde por OSs pode ser considerada como serviço público? Qual a melhor interpretação do artigo 24 da LOS, que permite a participação privada complementar na saúde pública somente quando as disponibilidades públicas forem insuficientes? E, por fim, qual a margem de liberdade do gestor público para optar pela atuação privada na prestação de serviços públicos de saúde?

A decisão judicial, ao se referir aos serviços de saúde prestados por OSs, identificou-os como “serviços públicos não exclusivos”. Quer a decisão dizer que serviços de saúde não são monopolizados pelo Estado, podendo os particulares também prestá-los. Essa prestação privada pode se dar por meio de entidades que exploram atividade econômica da saúde ou, ainda, por aquelas voltadas à filantropia (que prestam serviços sociais e que não visam a auferir lucro). As entidades qualificadas como OSs (reguladas pela Lei 9.637/98) estão inseridas nessa última hipótese. Portanto, quando um serviço de saúde é prestado por uma OS, não se está diante de um serviço público.

Se a entidade não conseguir executar bem suas ações, o poder público terá de atuar. E o fará em situação financeira muito mais sensível

Isso não significa que a prestação desse serviço não interesse, e muito, à administração pública. É que, se o serviço beneficente é bem prestado, há uma certa desoneração da prestação dos serviços estatais. Por isso, a legislação permite que a administração fomente essa prestação. Atualmente, duas formas de fomento têm sido praticadas com maior frequência: fomento real (dação de aparelhos públicos para a exploração privada) e fomento econômico (ajuda financeira).

Assim, quando o município de Curitiba resolve credenciar entidades como OSs para fomentar atividades filantrópicas de saúde, está, em verdade, deixando de prestar um serviço público (mas não desonerando-se dessa prestação) para fomentar uma prestação de serviços privados, mas gratuitos, de saúde. O problema é que as entidades fomentadas, já há algum tempo, perderam a capacidade de arrecadação de recursos na sociedade e hoje dependem exclusivamente de verba pública para atuar. Esse parasitismo coloca a administração numa delicada situação, pois, se a entidade não conseguir executar bem suas ações, o poder público terá de atuar. E o fará em situação financeira muito mais sensível, já que destinou verba considerável quando do fomento.

Já a análise do artigo 24 da LOS não pode ser feita sem relacioná-la com as normas constitucionais que versam sobre saúde. Saúde, diz o artigo 6.º da Constituição, é direito do cidadão. O dever de garantir esse direito é do Estado (segundo o artigo 196 da CF). Para garantir o exercício desse direito, pode o Estado (artigo 199 da CF) valer-se do privado de forma complementar. Mas, se o Estado esgotar suas disponibilidades financeiras (como interpretou a decisão judicial), como irá remunerar o privado chamado para prestar serviços públicos complementares? Ou seja, interpretar literalmente o artigo 24 da LOS significa impor que a atuação complementar somente ocorra quando o privado se dispuser a prestar serviços sem ser remunerado. Além de faltar razoabilidade a essa interpretação, ela coloca o Estado numa situação ainda mais difícil, pois coloca limites (não impostos constitucionalmente) para garantir ao cidadão o exercício do direito à saúde.

Leia também: Organizações Sociais: uma alternativa mais ágil e barata para gerenciar UPAs (artigo de Márcia Huçulak, publicado em 29 de novembro de 2017)

Leia também: A hora das Organizações Sociais (editorial de 17 de setembro de 2017)

A interpretação do artigo 24 da LOS mais compatível com a Constituição é aquela que compreende que o Estado não pode, a pretexto de se valer do privado, sucatear ou subutilizar aparato estatal (instalações e pessoal) voltado às ações de saúde. A lógica do artigo 24 da LOS orienta que, após mapear o aparato estatal (devendo utilizá-lo da maneira mais eficiente possível), o gestor público irá identificar uma parcela de ações públicas remanescentes, que devem ser executadas, a bem de garantir o exercício do direito à saúde do cidadão. Essa demanda remanescente poderá ser coberta pela atuação privada. Ela pode ou não ser volumosa, pode estar concentrada na saúde básica ou na alta complexidade, por exemplo. O que importa, para justificar o chamamento do privado à prestação pública de saúde, é que haja por parte do gestor público um perfeito delineamento das limitações do aparato administrativo frente à demanda de saúde existente.

Por fim, a decisão judicial que suspendeu o chamamento questionou a profundidade dos estudos que indicaram a solução do fomento às OSs de saúde como aquela que melhor atende ao interesse público. Não só pela precariedade dos estudos é que se vê como acertada a decisão judicial. Isso porque existem inúmeras alternativas (prestação pública direta, indireta, privada complementar ou privada fomentada) que devem ser postas à mesa, no intuito de encontrar aquela que melhor atende ao interesse público. E será aquela alternativa que entregar o melhor serviço de saúde possível ao menor custo. O gestor público não detém liberdade, portanto, para confrontar apenas as hipóteses que lhe convém: ou prestação direta ou OS, como feito em Curitiba. Até porque a alternativa que melhor atenderá à saúde da população pode ter ficado de fora das ponderações realizadas.

Silvio Guidi é mestre em Direito.
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