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Nos últimos meses têm sido veiculadas nas redes sociais notícias de diferentes nações – inicialmente, a Argentina; mais recentemente, a França – se posicionando com relação à existência da senciência animal, ou seja, a capacidade de sentir sofrimento e prazer.

Embora o Equador tenha sido pioneiro em considerar a natureza como sujeito do direito em sua Constituição, o espanto do posicionamento do parlamento francês é decorrente de um país com código civil conservador, que alterou o estatuto legal dos animais, que passam de “bens móveis” para “sujeitos do direito”.

O animal ético e a impossibilidade da ética animal

O utilitarismo ético elevou os sentimentos de prazer e dor a parâmetros objetivos a fim de fundamentar a moralidade. É o modelo ético do tipo consequencialista mais conhecido e, hoje em dia, sem dúvida o mais influente.

Leia o artigo de Francisco Razzo, mestre em Filosofia

Historicamente os animais são considerados propriedade do ser humano e tratados sob uma ética antropocêntrica. Contudo, a partir do fim do século passado, a legislação da maioria dos países tem se apoiado em uma ética utilitarista bem-estarista e elaborado leis que protegem esses animais contra crueldade, permitindo a utilização dos mesmos para benefício humano desde que não haja alternativa e desde que o seu bem-estar seja preservado.

No entanto, movimentos contemporâneos pautados em correntes éticas biocêntricas, ecocêntricas e abolicionistas apoiadas em novas descobertas da etologia e da neurociência têm direcionado o olhar da academia, legisladores e da sociedade para o fato de que os animais possuem consciência e sentimentos – fato que qualquer cidadão que conviveu minimamente com animais já sabia.

Em 2012, renomados cientistas de diferentes nacionalidades assinaram um manifesto atestando a existência de consciência nos animais. Essa iniciativa, somada com a pressão de ativistas, tem gerado situações polêmicas, como pedidos de habeas corpus para animais cativos e movimento para reconhecimento de baleias e golfinhos como sujeitos do direto. O Brasil reflete o cenário internacional: enquanto o Código Civil reconhece o animal como propriedade, a Lei de Crimes Ambientais os protege de atos de crueldade e a Lei Arouca regulamenta o uso de atividades acadêmicas e de pesquisa.

A questão é o que significa de fato para a sociedade os animais serem capazes de sofrer. Para a bioética, a partir do momento em que se reconhece o sofrimento como algo indesejável, é imoral proporcionar sofrimento para quem é capaz de sofrer. Assim, causar sofrimento – ressalta-se aqui: não apenas físico, mas também mental – seria imoral e ilegal. Mas será que apenas a constatação científica e a imposição legal são suficientes? Pois é notório que os humanos sabem que outros humanos têm sentimento, e essa compreensão não é suficiente para evitar causar sofrimento ao outro.

Lógico que, quando uma nação com tanta repercussão internacional toma uma medida inovadora como essa, deixa a expectativa de reforçar as discussões que pontualmente vêm ocorrendo em outros países. Mesmo porque diante de uma nova concepção também virão novas demandas sobre como tratar e usar os animais, assim como aconteceu com os escravos. É possível que surjam legislações que regulamentem o serviço prestado pelos animais – como já acontece com cães-guia, por exemplo.

Não há dúvida de que estamos presenciando um grande avanço e que trará necessidades de grandes ajustes. Contudo, não há como negar que a efetiva adesão da sociedade, com esse posicionamento ético, incorporou seu rol de valores pessoais não por imposição, mas por convicção.

Marta Fischer, bióloga, é doutora em Zoologia, coordenadora do Ceua-PUCPR e professora titular do mestrado em Bioética da PUCPR.
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