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 | Ricardo Stuckert/Instituto Lula
| Foto: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

Dias atrás, a Editora Unesp, em seu blog, divulgou um pequeno, mas importante trecho de uma das grandes obras que compõem o seu acervo. Falo da Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert, publicada em 1751, e o trecho a que me refiro trata-se do verbete “Humanidade”, segundo a concepção destes dois autores. Para eles, a humanidade “é um sentimento de benevolência por todos os homens que somente se inflama numa alma grande e sensível. Esse nobre e sublime entusiasmo atormenta-se com os sofrimentos dos outros e a necessidade de aliviá-los; desejaria percorrer o universo para abolir a escravidão, a superstição, o vício e o mal”.

A definição é emblemática, especialmente por causa de sua carga semântica e da filosofia que a fundamenta. É que, ao vincular semanticamente tal nobreza de sentimentos ao humano, ao que seria naturalmente humano, ela acaba por estabelecer uma dada forma de pensá-lo: é humano, verdadeiramente humano, o que é belo e sublime, e não necessariamente aquilo que derivar de alguém pertencente à espécie Homo sapiens.

Num primeiro momento, isso pode parecer paradoxal, mas, na verdade, trata-se tão somente de uma forma específica, romântica, de uso do termo “humano”: seria como se, nalgum lugar, houvesse uma certa essência humana, em torno da qual todos aqueles Homo sapiens orbitariam, uns mais próximos que a grande maioria, enquanto interagissem entre si.

O conceito, portanto, não é biológico nem científico, mas, de certo modo, ideal. E, se na face sublime da moeda encontra-se o humano, é certo que na face torpe, baixa e vil, estará tudo aquilo que se distancia desta humanidade, tudo aquilo que é, por assim dizer, desumano ou animalesco. Em suma, a natureza verdadeiramente humana seria virtuosa, nobre e grandiosa. O que houvesse de ruim deveria ser prontamente afastado do núcleo semântico deste termo.

Se a vileza fizer parte do humano, o que se deve fazer a respeito: resignar-se a ela ou procurar superá-la?

Há um inegável traço poético nesta definição de “humano”, o que a torna admirável sob este aspecto; mas, por outro lado, ela se assemelha sobremaneira a um deliberado e reconfortante “fechar de olhos” para a amplitude da nossa natureza, talvez por medo de encará-la de frente – a regra, aliás, é que, paradoxalmente, todos se julguem como pertencentes ao lado sublime e, logo, humano da moeda, pouco importando se suas ações guardam alguma coerência com este ideal, ao mesmo tempo em que facilmente associam a seu lado animalesco o Outro, o diferente.

E, quer queiramos, quer não, esta face sórdida da moeda que nos caracteriza a todos está aí, espreitando-nos e batendo cotidianamente à nossa porta. Não seria também esse um traço que nos torna humanos? Afinal, a história humana é, também, a história das crueldades.

Fiquemos com um exemplo recente: Marisa Letícia, ex-primeira-dama do país, foi internada, vítima de um AVC. Não foram poucos os que, por questões políticas e ideológicas, comemoraram a notícia, chegando mesmo a desejar a sua morte – o que aconteceu dias depois da internação. Os comentários sobre o caso nas redes sociais fariam Diderot e d’Alembert pensarem que qualquer resquício de humanidade há muito se perdera por ali; eu, no entanto, não consigo vislumbrar outro pensamento que não seja a aceitação de que o humano é desprovido de limites.

Mas, se isso for verdade, se a vileza fizer parte do humano, o que se deve fazer a respeito: resignar-se a ela ou procurar superá-la? A nobreza de espírito teria alguma vez no conjunto de ações humanas ou não passaria de um ideal inócuo e ilusório?

A obra Os Irmãos Karamázov traz o seguinte diálogo: “Acho que, se o diabo não existe e, portanto, o homem o criou, então o criou à sua imagem e semelhança”, diz um personagem, ao que outro responde: “Neste caso, exatamente como Deus”. A natureza humana é complexa, e deve ser encarada em toda a sua complexidade, sob pena de pobreza analítica e mesmo humanitária. Os reducionismos devem, portanto, ser evitados. Cada ser humano é um mundo circunscrito por um sem-número de contradições: abarcamos, ao mesmo tempo, o vil e o sublime, o divino e o diabólico. Somos naturezas amplas, karamazovianas, para usar os termos de Dostoiévski, “capazes de encerrar todas as oposições possíveis e contemplar de uma vez ambos os abismos, um abismo que está acima de nós, o abismo dos altos ideais, e o abismo que está abaixo de nós, o abismo da queda mais vil e funesta”.

Assim é que vemos pessoas desejarem e comemorarem o sofrimento e a morte de outra, ao mesmo tempo em que, noutra situação, prestam solidariedade sincera e bela às vítimas de uma tragédia aérea; aplaudirem discursos de ódio, saudarem tempos ditatoriais e enaltecerem linchamentos, ao mesmo tempo em que se comovem com a fome, a miséria e as várias injustiças com que se deparam.

É claro que, se analisados sob um prisma racional, estes sentimentos podem, por vezes, revelar-se contraditórios e hipócritas. Podem, por exemplo, ser fruto de um sentimento nacionalista ou grupal, hipótese em que a solidariedade não se manifestaria a não ser quando se tratasse de pessoas com as quais encontrássemos alguma dessas identificações. Essa circunstância, naturalmente, não pode ser ignorada, como não pode sê-lo o fato de que há, sim, um lado torpe que é tão humano quanto o seu oposto grandioso, o qual, neste caso, provavelmente se encontraria justamente no compadecimento pelo diferente. De qualquer forma, da existência desta face nociva não decorre, necessariamente, o dever de a ela se submeter, sem qualquer resistência ou crítica.

Uma característica da nossa natureza pensante – e, logo, humana –, aliás, parece residir na necessidade de transcendência: porque a realidade não oferece respostas a todas as nossas perguntas e porque não corresponde a muitas das nossas expectativas – numa palavra, porque ela não basta –, e na medida em que somos dotados da possibilidade de criticá-la e melhorá-la, é certo que uma postura de submissão irrefletida soa inadequada. Daí é que o ideal, a utopia, de certo modo, caracterizam-nos enquanto seres humanos. Perdê-los, por outras palavras, pode significar o abandono de um traço que nos é essencial. O importante é conjugá-la com uma boa dose de realismo, isto é, sem perder de vista a complexidade do mundo e, sobretudo, da nossa natureza.

André Felipe Portugal, advogado, é mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra (Portugal).
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