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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

A inesperada visita da presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF) ao Paraná, na segunda semana de janeiro, trouxe uma luz de liberdade às grávidas do sistema penitenciário. O Tribunal de Justiça do Paraná e o Ministério da Justiça ainda estudam um mutirão para implementar as alterações ou progressões de regime, mas a determinação de Cármen Lúcia, concebida nos mesmos moldes da Lei do Ventre Livre (1871), é de que o Brasil pare de assistir a crianças nascendo no cárcere. Elas não podem ser culpadas pelo que não entendem enquanto brincam dentro de muros de cinco metros de altura. O despacho deve atingir 19 grávidas apenas nas penitenciárias da Região Metropolitana de Curitiba. A única boa notícia do dia.

Horas antes desse anúncio, guiaram-na por um roteiro totalmente inverídico. Cármen Lúcia conheceu a única unidade que respeita a Lei de Execução Penal, onde 200 presos têm acesso a estudo e trabalho, e a Casa de Custódia de Piraquara (CCP), com 1,4 mil encarcerados, mas ela não viu nenhum. A magistrada ainda conheceu uma das 80 celas modulares – eufemismo para contêineres – da CCP, mas o local estava vazio e limpo. Esses espaços costumam abrigar 14 homens em 12 vagas. Eles saem para o banho de sol a cada 30 dias – o que contraria a lei.

Cármen Lúcia tampouco conheceu as carceragens das delegacias. Essas celas improvisadas constituem o pior do Paraná. Os presos convivem com ratos, latrinas entupidas, alguns não têm acesso a água corrente. Quatro dividem um único colchão enquanto outros assistem ao sono de pé. Há abusos sexuais e um descontrole de doenças de pele e tuberculose. Policiais civis fazem as vezes de agentes penitenciários, o que afronta o papel constitucional da instituição. É a realidade de 10 mil pessoas – condenados e provisórios.

As celas improvisadas constituem o pior do Paraná

A cada fuga, motim ou denúncia, o governo do Paraná promete a construção e reforma de 14 unidades para desafogar essas carceragens, mas as novas vagas não ficaram prontas em 2017 e não sairão do papel em 2018. Para solucionar esse “estado de coisas inconstitucional”, nas palavras do STF, a Secretaria de Segurança Pública criou outro: comprou celas modulares idênticas às atuais para aumentar o número de presos de uma delegacia (11.º DP) e atrapalhar a execução penal de algumas penitenciárias. Quantos agentes serão disponibilizados para atender os novos 96 presos na Penitenciária Estadual de Piraquara (unidade de segurança máxima), por exemplo? Nenhum.

Apelar para os contêineres afronta qualquer dispositivo constitucional. Em 2017, o Paraná e a Organização dos Estados Americanos (OEA) assinaram um memorando de entendimento para melhorar a Justiça penal e o governo federal lançou um Plano Nacional de Segurança Pública com a promessa de modernização do sistema penitenciário. As celas modulares rasgam esses papéis. Elas representam o que há de mais atual, se estivéssemos no começo do século 20. O Estado não trancaria 12 cachorrinhos numa gaveta, o que seria impopular, mas não tem vergonha de submeter um ser humano a essa condição.

O Brasil ainda é signatário das Regras de Mandela para tratamento de presos e elas afirmam, em determinado momento, que o regime prisional deve procurar minimizar as diferenças entre a vida no cárcere e aquela em liberdade. É a única saída para a reintegração social. Poucos conseguem enxergar dias melhores diante de um cenário cada vez mais catastrófico.

Há um ano, presos do Amazonas e do Rio Grande do Norte esquartejavam outros presos e mandavam as imagens em tempo real para fora das unidades. A população de Goiás já assistiu, atônita, a cenas similares – e 2018 teve apenas 20 dias.

Leia também: O que fazer com nossas prisões? (editorial de 11 de janeiro de 2017)

Leia também: O brasileiro e os bandidos (editorial de 4 de novembro de 2016)

Leia também: O indulto, a prisão e o “ghoul” de Scalia (artigo de Diego Pessi, publicado em 7 de janeiro de 2018)

O Paraná não é uma ilha de fantasia. Três presos foram mortos na Casa de Custódia de Curitiba nesta semana em função de um desencontro de facções. Entre o Natal e a primeira semana de janeiro, pelo menos 87 presos fugiram de unidades do interior e da capital. Há uma estranha naturalidade nas frases porque elas se repetem incontáveis vezes. E as soluções são sempre equivocadas.

A situação, aliás, perdura há muitos anos no Paraná, apesar do aparente controle. Rebeliões recentes em Cascavel e na penitenciária feminina provam isso, sem falar nos motins das delegacias. Na Comissão de Direitos Humanos da OAB-PR, levamos às autoridades dois relatórios (em 2012 e 2015) que compreendem o melhor retrato falado do caos: a supremacia de jovens negros semialfabetizados atrás das grades, crimes ligados direta ou indiretamente ao mercado de drogas, unidades velhas e o esvaziamento no número de funcionários. O Brasil perde a batalha diária contra as facções por inanição.

Nos últimos dias de 2017, presos da Penitenciária Central do Estado me entregaram um documento que contém 1,5 mil assinaturas. Eles reclamam de muitas coisas, mas, em suma, pedem oportunidade de trabalho e estudo, mais tempo de sol e atenção com as famílias – as unidades têm pouquíssimos assistentes sociais para fazer essa ponte. A alimentação só serve para deixar o sujeito vivo.

O país não pode mais conviver com demagogia penitenciária. Bandido não tem de morrer, tem de ser julgado e aprisionado com dignidade. O Brasil prende muito e muito mal. O discurso duro da segurança pública é apenas um texto despreparado, desconectado da realidade dos presos e dos agentes penitenciários. O cárcere é parte do problema e pode ser parte da solução. Ou é inteligente aprisionar alguém por participar do mercado da droga direta ou indiretamente e segregá-lo num ambiente em que as drogas imperam?

Isabel Kugler Mendes, advogada, é presidente do Conselho da Comunidade da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba – Órgão da Execução Penal.
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