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 | Foto: Romerio Cunha/ Vice-Presidência da República/Fotos Públicas
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Cada país tem sua singularidade, mas a Rússia tem algo de diferente. É enigmática pelos mitos, pelas lendas e pelas versões sobre fatos históricos que a diferenciam do que aprendemos nos livros didáticos. Em parte, é decorrência da bipolarização que se estabeleceu entre os Estados Unidos e aliados contra o regime comunista dominante por cerca de sete décadas na antiga União Soviética, extinta em 1991.

Em seis impactantes dias em Moscou e São Petersburgo, convivemos intensamente com professores, guias turísticos e com russos de extratos sociais distintos. Sem o rigor de uma pesquisa científica, buscava compreender o sentimento que os russos têm atualmente em relação ao regime comunista implantado em 1917. Atrevo-me a dividir as opiniões em dois grandes grupos.

Primeiramente, há os saudosistas, para os quais o comunismo oferecia mais qualidade em saúde e educação, bem como maior segurança na aposentadoria. Para esse grupo, não havia desemprego – ainda que, se um engenheiro não tivesse trabalho, que fosse quebrar pedras – e quem não trabalhasse era muito mal visto. O sentimento antinorte-americano é mais forte. Por que os Estados Unidos soltaram duas bombas atômicas no Japão em 1945?, perguntam. Sim, o objetivo principal foi intimidar os soviéticos. E essa é a razão de as estações de metrô serem tão profundas – serviriam de abrigos antiatômicos.

53% da população russa tem ensino superior, o índice mais alto do mundo

Ademais, justificam, foram os soviéticos, com Stalin à frente, que venceram os nazistas na Segunda Guerra Mundial, e não os norte-americanos. Com a perda de 27 milhões de civis e militares, foi uma vitória com muito sangue e heroísmo, pouco reconhecida no Ocidente, queixam-se. E as atrocidades e os 2 milhões de soviéticos mortos pelo regime?, pergunto. E eles respondem com outra pergunta: Quem os contou? Os números são muito menores e as mortes foram essencialmente cometidas por Stálin, que já foi punido, embora tenha sido um grande patriota, afirmam.

De fato, rememorando a história, Stalin faleceu em 1953 e no 20.º Congresso do Partido Comunista, realizado em 1956, seu sucessor, Nikita Kruschov, em um célebre discurso, denunciou seu antecessor pelas brutalidades e abusos de poder: “Stalin descartou o método leninista de convencer e educar. Ele abandonou o método de luta ideológica para que prevalecesse a violência, repressões em massa e terror”. Ademais, como punição, além da liquidação moral, seu corpo embalsamado, que até então jazia ao lado do sarcófago de Lenin, na Praça Vermelha, sofreu um downgrade ao ser transferido para as muralhas do Kremlin, ao lado de outros heróis soviéticos.

Há um segundo grupo, a quem pouco importa o passado socialista, adotando uma postura pragmática e um modus vivendi similar ao de qualquer outra cidade do Ocidente. Eles valorizam a meritocracia e a capacitação profissional – 53% da população russa tem ensino superior, o índice mais alto do mundo (no Brasil, o indicador é de 11%). Preocupam-se com o desemprego, que ronda os 7%, e com os custos complementares de uma boa educação, saúde e previdência, embora beneficiem-se das moradias doadas pelo Estado – as mesmas que habitavam durante o antigo regime e com direito a repasse aos herdeiros.

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Sem provocações explícitas, os dois grupos convivem à sua maneira com o passado, e o presidente Vladimir Putin representa uma quase unanimidade – seu governo mantém mais de 80% de aprovação popular, pois incorpora o status de líder forte. É reconhecido como um patriota, agregador, e conduz na medida certa a abertura econômica que precede a abertura política. Assim o faz a China, assim o fez o Chile. Já o Brasil optou pelo caminho inverso: primeiro a abertura política, relegando a um plano secundário o ambiente de negócios, a inovação, a desburocratização e as reformas necessárias.

A Rússia, com o dobro do território brasileiro e contrastes do tamanho de uma Transiberiana, vai muito além de Moscou e São Petersburgo, cidades-símbolo, de per si muito diferentes, porém ambas atraentes, limpas, seguras, sem pichações e mendicância, repletas de gente afável e culta. Nelas, características semelhantes às metrópoles ocidentais, com os preços análogos aos de São Paulo e os irritantes congestionamentos, convivem com uma cultura sui generis e uma historiografia muito interessante, formada por páginas pungentes de heroísmos, traições, luxúria, sangue e sofrimento. Todavia, a locomoção e a compra de ingressos são complexas, poucos falam o inglês e as placas indicativas são somente em russo. Nesse sentido, a realização da Copa do Mundo de 2018 produzirá fortes estímulos ao aprendizado do inglês entre os jovens, recepcionistas, garçons e, possivelmente, promoverá melhorias na sinalização para estrangeiros. Ainda assim, para um merecido passeio neste país singular, prevalece o conselho que recebi: não se meta na Rússia sem um bom planejamento e um guia especializado!

Jacir J. Venturi, ex-professor da UFPR e da PUCPR, ex-presidente do Sinepe/PR e ex-vice-presidente da ACP, é coordenador da Universidade Positivo.
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