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No início deste mês, foi lançado manifesto de notáveis para a convocação de assembleia nacional constituinte. A tese central é a de que a atual Constituição estaria datada, seria fonte de privilégios e traria previsões irrealistas. Diante do diagnóstico do perecimento (ou, quem sabe, da decrepitude) da Constituição, caberia o remédio de fazer uma nova, alinhada aos desafios contemporâneos. Este debate, que se renova de tempos em tempos, nos remete a uma questão central, comumente esquecida: para que serve a Constituição?

Por um lado, podemos pensar na resposta formal: serve para estruturar os poderes do Estado e estabelecer direitos e garantias. Mas essa função não explica o diagnóstico sombrio acerca do seu perecimento. Teríamos de acrescentar a função de nortear a esfera política e construir instituições capazes de organizar o Estado. Mas justamente aí surge o ponto: por que criar outra Constituição? Por que convocar uma constituinte?

Neste momento conturbado, propor a constituinte é atuar como cortina de fumaça dos problemas nacionais

Assumindo a percepção do papel da Constituição como reforço da estabilidade das instituições, aliás compatível com o constitucionalismo contemporâneo, resta duvidosa a necessidade de uma nova, neste momento tão conturbado. Para pensar melhor, seria indicado que desviássemos os olhos para o passado. Afinal, o Brasil já teve oito constituições, que serviram tanto para criar pactos constitutivos como para desviar as questões mais sensíveis. De comum temos a construção de uma narrativa de crise a fazer com que a Constituição se tornasse insuficiente.

Entretanto, usa-se a assembleia constituinte como formula mágica para mudar as práticas, como se o texto tivesse o potencial milagroso de alterar a realidade. Ignora-se que a Constituição não é somente seu texto, mas seu contexto. Esquece-se que a Constituição não se autoaplica, mas a sua aplicação é feita por instituições que, por sua vez, são compostas por pessoas. Alterar o texto, mas não as práticas, é a melhor maneira de mascarar os conflitos. Muda-se para nada mudar.

Porém, se alguma dúvida persistir, recomenda-se ao leitor que reveja as votações do recente processo de impeachment, sobretudo a da Câmara dos Deputados. Pense-se naqueles senhores a elaborar a Constituição. Mas, ainda se cogitarmos de eventual – e não democrática – assembleia de notáveis, basta assistir às sessões mais acaloradas do STF. Mesmo quando concordam, os ministros divergem – e são pessoas da mais alta suposição, com formação jurídica e integridade ética incontestáveis. Imagine-se o que seria a constituinte, no atual estado de coisas.

A bem da verdade, no momento política e juridicamente conturbado como o nosso, propor a constituinte é a melhor maneira de atuar como cortina de fumaça dos problemas nacionais. Isso sem se falar do pior, de destruir um projeto de inclusão a partir dos direitos fundamentais. A Constituição pode muito, mas não joguemos em sua conta resolver todos os conflitos políticos, ou teremos o eterno retorno do discurso de novas constituintes até completarmos dúzias de constituições.

Egon Bockmann Moreira é professor da Faculdade de Direito da UFPR. Heloisa Fernandes Câmara é professora da Faculdade de Direito do Unicuritiba.
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