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| Foto: Susan Stocker/Sun Sentinel/AFP

Há algum tempo, dois policiais chegaram com um rapaz de 21 anos na unidade de emergência onde atendo como psiquiatra. Os pais tinham ligado para a polícia depois que viram postagens em sua página do Facebook que elogiavam os atiradores de Columbine, falavam de morte e destruição iminentes na faculdade comunitária onde estudava e prometiam o seu próprio “dia do troco”. O irmão contou que ele comprara uma arma havia pouco tempo.

Quando o entrevistei, negou tudo. Não tinha histórico de doença mental e afirmou não querer/precisar de tratamento nenhum. Minha função era avaliar se ele preenchia os critérios para ser internado, contra a vontade, em um hospital psiquiátrico.

Cada massacre reacende o debate sobre as causas desse tipo de violência e como ela pode ser evitada. Quem se opõe às restrições ao porte de arma geralmente se volta para o sistema público de saúde mental. Os psiquiatras não deviam poder identificar alguém tão perigoso quanto Nikolas Cruz, jovem acusado pelo atentado a uma escola na Flórida, na semana passada, depois de ter assustado os colegas, machucado animais e deixado postagens ameaçadoras na internet?

Não podemos impedir que jovens instáveis e revoltados comprem armas? É muito mais difícil do que parece

Cruz já sofreu de depressão e chegou a fazer terapia. Passou por uma avaliação mental de emergência, em 2016, mas optaram por não o internar. Por que, os críticos questionam, não recebeu tratamento adequado? Não podemos impedir que jovens instáveis e revoltados como ele comprem armas?

É muito mais difícil do que parece. O sistema público de saúde mental não identifica a maioria dessas pessoas porque elas não procuram ajuda – e, mesmo quando o fazem, as leis criadas para preservar as liberdades civis dos doentes mentais impõem limites aos tratamentos que podem ser impostos a uma pessoa contra sua vontade.

Na Califórnia, como em grande parte dos estados, o paciente tem de representar um perigo a si mesmo e aos outros para ser internado em um hospital psiquiátrico. Esse é o mecanismo que “força” a pessoa a se tratar quando já está tão afetada pela doença que não sabe mais do que necessita. Foi o que me permitiu internar uma mulher que tentou enforcar a mãe por acreditar piamente que seus familiares tinham sido substituídos por impostores, e um homem que enviara cartas ameaçadoras à chefe porque achava que ela tinha implantado um microchip em seu cérebro.

Já o rapaz que tinha escrito que queria atirar nos colegas de classe estava calmo, era educado e estava disposto a cooperar. Explicou que as postagens não passavam de bravata on-line. Negou ser suicida ou homicida; nunca tinha ouvido vozes, nem recebido mensagens estranhas pela televisão. Admitiu ter sofrido bullying e se ressentir pelo fato de os colegas parecerem se dar melhor na vida social e romântica, mas negou veementemente que pudesse se tornar violento com eles.

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Quais as minhas opções? Estava bem claro que ele não tinha nenhuma doença psiquiátrica que justificasse uma hospitalização involuntária, mas eu relutava em liberar um homem cuja história repetia tantas outras de diversos atiradores em massa.

Eu poderia exagerar um pouco, alegando precisar de mais tempo para observação e interná-lo de qualquer forma, mas, em questão de uma semana, ele poderia procurar um ouvidor para dizer que tinha sido confinado contra a vontade – o ouvidor, por sua vez, provavelmente chegaria à mesma conclusão que eu, a de que não era perigoso por causa de alguma doença mental, e o liberaria. A única vantagem dessa sequência de eventos seria o fato de que a ordem de liberação do homem com potencial para ser o próximo atirador não seria assinada por mim.

Ou talvez o ouvidor compartilhasse a minha preocupação e não o liberasse por medo do que pudesse fazer; nesse caso, o hospital teria mais duas semanas para tratá-lo.

O psiquiatra responsável por seu caso saberia, obviamente, como tratar delírios, paranoia, impulsos suicidas, comportamento maníaco, autoflagelamento, alucinações e catatonia, mas não há cura garantida para a insegurança, o ressentimento, o ódio e o sentimento de direito constituído.

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O único benefício concreto de interná-lo oficialmente seria proibi-lo de comprar armamento de qualquer estabelecimento licenciado em âmbito federal. É claro que isso não adiantaria de nada se já tivesse armas e/ou munição, nem o impediria de procurar um revendedor particular que, em muitos estados, isenta o freguês de qualquer verificação de antecedentes.

Acabei internando o paciente, que foi solto pelo ouvidor dois dias depois. Ele acabou não tomando nenhum remédio, não transgrediu a proibição de compra de armas por fornecedor público e deixou o hospital do mesmo jeito que entrou. Como muitos outros, não vai procurar terapia para os traços de personalidade que parecem predispô-lo à violência e à fúria, e não há como lhe impor esse tipo de tratamento.

O sistema de saúde mental não consegue impedir atentados e tiroteios em massa simplesmente porque raramente a doença mental é a causa desse tipo de violência. Mesmo que todos aqueles que têm potencial para perpetrar chacinas recebam tratamento psiquiátrico, não há cura garantida para jovens revoltados que nutrem fantasias violentas. E as leis em vigor para impedir que os doentes mentais adquiram armamento são muito limitadas e facilmente dribladas; gente como Cruz e o meu paciente provavelmente não se encaixariam em seu perfil.

Em vez de esperar que a imposição de um tratamento psiquiátrico em todos que mostrem “sinais de alerta” ponha um fim a esses massacres, deveríamos nos concentrar em manter uma boa distância entre esses jovens e suas armas.

Amy Barnhorst é vice-diretora de Psiquiatria Comunitária da Universidade da Califórnia em Davis e diretora médica do Centro de Tratamento de Saúde Mental do Condado de Sacramento.
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