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O espaço das mulheres nas sociedades não tem relação com biologia, anatomia ou natureza

Alguns estudantes têm me questionado sobre uma questão do Enem deste ano. Refiro-me à reprodução de parte de texto do livro O segundo sexo, publicado em 1949 por Simone de Beauvoir, filósofa, escritora francesa e esposa de Jean-Paul Sartre, crítico, filósofo e escritor francês. Leiamos a questão:

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam o feminino. (BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1980)

Na década de 1960, a proposição de Simone de Beauvoir contribuiu para estruturar um movimento social que teve como marca o (a)

a) ação do Poder Judiciário para criminalizar a violência sexual.

b) pressão do Poder Legislativo para impedir a dupla jornada de trabalho.

c) organização de protestos públicos para garantir a igualdade de gênero.

d) oposição de grupos religiosos para impedir os casamentos homoafetivos.

e) estabelecimento de políticas governamentais para promover ações afirmativas.”

A resposta correta, segundo o gabarito, era a letra (c).

Como amplamente divulgado pela mídia, vereadores de Campinas (SP) interpretaram a questão do Enem como ideologia de gênero, a partir da qual fizeram a pergunta: “Como pode alguém ser homem de manhã e mulher à noite?” Em outras palavras, atribuíram erroneamente o sentido, repercutindo a iniciativa do vereador Campos Filho (DEM) da aprovação da moção de repúdio a Simone de Beauvoir.

No entanto, diz a advogada Ana Carolina Cavazza, também de Campinas: “A questão pediu para que os candidatos [do Enem] fizessem a associação entre o pensamento de uma filósofa com um fato social. Para esses senhores, não se pode perguntar ou debater a ideia de uma filósofa que tem um pensamento diferente do deles [...]. Os vereadores voltaram a protagonizar um papel absurdo associando questões com uma suposta ideologia de gênero, que é uma coisa que não existe”.

Beauvoir é uma referência na luta pelos direitos femininos na sociedade. A questão do Enem trata da organização de protestos do movimento feminista pela igualdade de gênero, com intuito de eliminar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Pensemos: as crianças, desde pequenas, foram educadas de formas diferentes. Nas atividades lúdicas, as meninas recebiam pequenos fogões e vassouras, entre outros. Eram preparadas, a partir do lúdico, para a vida social, a exemplo dos meninos, que recebiam bonecos destinados a brincadeiras de luta.

Juremir Machado da Silva, professor universitário, escritor, tradutor e jornalista, esclarece: “Papai no trabalho, mamãe em casa? A anatomia nada tem a ver com isso. Essa concepção é apenas uma construção histórica que se converteu em ideologia machista. O próprio das ideologias é a naturalização de ‘verdades’ (...) Simone de Beauvoir ajudou a mostrar que as mulheres não são objetos nem propriedades dos homens. Mais do que isso, que não precisam ser protegidas por seus senhores da guerra nem tuteladas. (...) A fórmula de Simone pode ser aplicada aos machistas e aos obscurantistas. Não se nasce machista. Torna-se. Não se nasce obscurantista. Torna-se. Pela cultura. De certo modo, a natureza é uma invenção cultural. Simone morreu em 1986. Ao longo dos seus 78 anos, escandalizou os conservadores, iluminou o caminho das mulheres, lutou contra a barbárie da dominação masculina”.

O espaço das mulheres nas sociedades (controladas pelos homens) não tem relação com biologia, anatomia ou natureza. É fruto da construção histórica.

Jorge Antonio de Queiroz e Silva, historiador, palestrante e professor, é membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.
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