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Representação de Don Giovanni em Salzburg | Francisco Peralta Torrejón/Wikimedia Commons
Representação de Don Giovanni em Salzburg| Foto: Francisco Peralta Torrejón/Wikimedia Commons

Diz-se que certo pensador teria protestado contra quem lhe roubasse a solidão sem dar em troca verdadeira companhia. A frase é sábia, e a ideia nela contida, se à primeira vista diz respeito aos lamentos, às cicatrizes de paixões dos que, por exemplo, atravessaram os dissabores afetivos de juventude, também enfatiza a superação dessas paixões arrebatadoras rumo ao compromisso que o amor significa.

É o tema central da ópera Don Giovanni – a saga de um Don Juan do século XVIII magistralmente retratado por Mozart e Lorenzo da Ponte. Como inversão da ordo amoris agostiniana (a perfeita hierarquia dos afetos e da vontade em torno de Deus mesmo, que lhes dá sentido), o sedutor da ópera é um epígono da mera euforia, da alegria fugaz. Sua tranquilidade e desprendimento no decorrer da narrativa são enganosos: como os niilistas e engajados pós-modernos atuais, Giovanni despreza a verdadeira alegria em troca de migalhas de contentamento vão. O apelo de Donna Elvira, que lhe devota generoso amor, é o chamamento divino, quase desesperado, para que ele abandone os pecados, que escolha a verdadeira vida. Ela antecipa, assim, o convite feito pelo Comendador a quem nosso protagonista, nos inícios do drama, assassinara. Escandalosamente, o Comendador rasga céus e terra para cear com seu algoz, aparecendo em espírito para oferecer-lhe a salvação. Mas Giovanni prefere as mille e trè seduções de que fora capaz até então, renunciando a ser de fato “luminoso” para ser apenas “mais brilhante”.

O amor humano é um ato de devoção. Para ser genuíno e fecundo, tem de ser cercado de promessas, coroado por uma aliança pela qual se interligam corpos e almas e marcado pela intencionalidade, que é impossível aos animais. Este é, a propósito, o sentido da castidade na tradição cristã: longe de representar mero objeto de interdição, o ato sexual deve ser cercado de votos que o elevam ao nível da vontade, onde as coisas podem ser duradouras, donde se pode avançar ao sublime; não é a castração do desejo, mas sua valorização por protegê-lo da banalidade.

O mundo afetivo é importante demais para ser arriscado sem qualquer esperança de permanência

Não é a fugacidade dos atos sexuais descomprometidos que lhes confere valor, e sim a expectativa, comum a toda ação na qual a intimidade é disposta, de que podem abranger a pessoa inteira: a experiência e nosso arraigado senso de sobrevivência nos dirão que o mundo afetivo é importante demais para ser arriscado sem qualquer esperança de permanência, e não há perspectiva de continuidade para uma vida destituída de acordos mínimos que envolvam às vezes um abrir mão dos apetites de ocasião em benefício da necessidade de vínculos sólidos.

Aplicar a lógica da fome a alguém é tentar ferir de morte a sua dignidade – é, de fato (o clichê aqui é absolutamente verdadeiro), coisificá-lo, encarcerá-lo no mundo dos objetos: pode-se querer matar a fome com bananas, mas ela será certamente aplacada caso eu só disponha de feijões. É o que a pornografia ou o estupro fazem. Mas é humanamente falso que o desejo sexual esteja restrito a isso, que seja um tipo de prazer específico localizado nas partes pudendas, segundo diz um filósofo britânico. O sexo, assim considerado, equivale à masturbação. Segundo uma pesquisa feita nos EUA em 2010, 56% dos casos de divórcio envolveram cônjuges que consumiam material pornográfico de maneira compulsiva, conforme aponta o laborioso estudo The Social Costs of Pornografy, editado naquele mesmo ano por James R. Stoner e Donna M. Hughes. Entre pessoas sadias, definitivamente, não é assim que acontece. A complementariedade antropológica e genética dos corpos da mulher e do homem é sinal de sua complementariedade espiritual. Isso está a seu modo implicado na noção platônica de eros: um amor cujo ápice é contemplar, não simplesmente possuir.

Leia também: C.S Lewis, natureza humana e a “abolição do Homem” (artigo de Carlos Adriano Ferraz, publicado em 3 de maio de 2018)

Nossas convicções: A dignidade da pessoa humana

A erosão emocional proveniente duma cultura do divórcio ou de relações provisórias já foi reconhecida pela psicologia contemporânea. O apaixonado tende a buscar afinidades e a desprezar as diferenças, e, como vivemos num mundo diverso, só é possível que sobre os relacionamentos atuais impere a insegurança, o medo. Daí a necessidade permanente de aceitação baseada não no amor, mas no narcisismo, de se ouvir sempre e novamente “eu te amo”; já o amoroso, por definição, necessita do outro, é “antissolipsista”, e busca assimilar o ser amado na inteireza de suas qualidades e defeitos, desejos sexuais e escolhas racionais. É como se diz: o apaixonado toma, enquanto o que ama, dá-se. (Poucos expressaram esta abnegação, a paciência implicada no amor, como o fez Camões, valendo-se da história bíblica de Raquel e Jacó para compor o belíssimo Soneto 29).

Também, nenhum sociólogo ou antropólogo respeitável negará a importância funcional do casamento para qualquer sociedade. Não por acaso, a cerimônia matrimonial é assistida por convidados, que simbolizam a aceitação pública da palavra firmada e suas consequências sociais. Hoje, tem-se plena clareza de que as crianças nascidas dentro de casamentos serão com maior probabilidade mais socialmente integradas, seus relacionamentos serão mais duradouros e seus próprios filhos certamente gozarão, por sua vez, de ambientes mais favoráveis ao desenvolvimento pessoal. Os abusos familiares às crianças, que muitos dirão provir dos lares conjugais “tradicionais”, resultam antes da cultura do divórcio (em seus termos atuais, iniciada na Revolução Francesa), e não da instituição do casamento. A visão negativa que se tem das madrastas dos contos de fadas exprime essa realidade. Noutra pesquisa dos anos 1990, o Family Education Trust concluiu que, comparando com a vida numa família natural intacta, as crianças que vivem em lares compartilhados com padrastos e madrastas são 33 vezes mais suscetíveis de padecerem abuso grave e 73 vezes mais suscetíveis de sofrerem abusos fatais. Não espanta, portanto, que os ritos de passagem religiosos tenham reconhecido o casamento como o sinal material de um vínculo não apenas social, mas existencial.

O clássico de Mozart e Da Ponte foi composto praticamente nos primeiros rumores da Revolução de 1789, na França, e muitos foram os que o leram como um panfleto político. Mas seu acento moral, grandeza estética e penetração espiritual transcendem, por óbvio, o simplismo politizante tão a gosto dos revolucionários – de ontem e de hoje. Don Giovanni testemunha o trabalho do amor – o rogo íntimo e inapelável da alma que retorna a si em busca de sua fonte primeira, a um só tempo perenal e nova. Tu, Senhor, nos fazes desejar e realizas o nosso desejo. De muito o que disseram as eras quanto à sua natureza sem, contudo, compreendê-lo de todo, Gómez Dávila consagrou-lhe estas palavras imortais: “La interrogación sólo enmudece ante el amor. ‘¿Para qué amar?’, es la única pregunta imposible”.

Glaucio Vinicius Alves é mestre em Ética e Filosofia Política e presidente do Instituto leão XIII.
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