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A crise na Península Coreana, foco mais perigoso de instabilidade na ordem geopolítica mundial, abrange uma dimensão analítica. A Coreia do Norte está coberta por uma densa neblina de equívocos conceituais. Acredita-se que o regime norte-coreano é irracional, que a China é capaz de controlar os rumos do país vizinho e que Kim Jong-un pode ser contido pelas táticas amadoras de Donald Trump. Os três enganos, contraditórios entre si, têm implicações desastrosas.

“No impasse EUA-Coreia do Norte, precisamos de um líder sensato”, escreveu Joshua Keating na revista Slate, acrescentando ironicamente que Kim parece mais apropriado ao papel. A crença na irracionalidade do líder norte-coreano inscreve-se na mesma linhagem de diagnósticos simplórios que atribuíram o nazismo e a Segunda Guerra Mundial à “loucura de Hitler”. O senador John McCain atira longe do alvo ao vocalizar o senso comum, caracterizando Kim como “esse louco garoto gordo que governa a Coreia do Norte”. Kim é um ditador cruel (e certamente está acima do peso ideal), mas não é louco. Do ponto de vista da defesa de seus próprios interesses, o regime que ele comanda opera racionalmente ao desenvolver capacidades nucleares.

As origens do programa nuclear norte-coreano remontam à década de 1960, mas a aceleração dos esforços de construção de artefatos atômicos e vetores de lançamento está ligada às duas derrotas militares do Iraque frente aos EUA, em 1991 e 2003. Delas, o regime extraiu a lição de que, no pós-Guerra Fria, sua sobrevivência dependeria da posse de armas de destruição em massa suficientes para converter em reféns cidades japonesas e americanas. Os testes de mísseis balísticos intercontinentais (ICBMs) e os progressos na miniaturização de artefatos nucleares, de modo a montá-los como ogivas, são os passos conclusivos nessa trajetória. Loucura? Não: cálculo geopolítico.

Kim é um ditador cruel, mas não é louco

Kim não é maluco, mas aplica meticulosamente a “estratégia do louco”, um célebre recurso descrito na teoria dos jogos. A ideia básica é produzir uma percepção de imprevisibilidade: os demais atores serão dissuadidos de exercer pressão extrema pois o “louco” não conhece os limites da prudência. A tese popular da irracionalidade de Kim, com a qual Trump flerta algumas vezes, evidencia o sucesso da estratégia seguida pelo regime norte-coreano.

“Talvez a China tome uma forte iniciativa e acabe de vez com esse nonsense”, tuitou Trump em julho, logo após o primeiro teste norte-coreano de um ICBM. A crença de que a Coreia do Norte não passa de um protetorado chinês deriva da Guerra da Coreia (1950-53), quando o regime comunista foi resgatado da catástrofe pela entrada das forças chinesas no conflito. Contudo, é tão ingênuo enxergar Kim como um fantoche de Pequim quanto definir Israel como uma marionete de Washington. A casta política e militar que sustenta a dinastia comunista norte-coreana não comete o erro fatal de confundir os seus interesses com os da China.

Os chineses, como antes os soviéticos, recusaram-se a cooperar com o programa nuclear norte-coreano. Os mísseis da Coreia do Norte ameaçam a estabilidade do Extremo Oriente, minando os alicerces de uma ordem geopolítica fundamental para o desenvolvimento econômico da China. A hipótese da nuclearização do Japão, como expediente de autodefesa diante do regime norte-coreano, provoca calafrios no núcleo dirigente chinês. Ao condenar os testes conduzidos pela Coreia do Norte, Xi Jinping expressa o interesse nacional da China. Disso, porém, não segue que o governo chinês estaria disposto a aceitar a implosão da Coreia do Norte, com suas previsíveis implicações: um fluxo incontrolável de refugiados, a reunificação estatal coreana e o estacionamento de forças militares americanas junto à fronteira da China.

Leia também:Impasse nuclear (editorial de 8 de setembro de 2017)

Flavio Quintela:  Coreia Bolivariana do Norte (25 de agosto de 2017)

Trump ignora isso tudo na sua abordagem da crise, que oscila de um extremo a outro, revelando a ausência de uma estratégia. O presidente americano já surpreendeu seus assessores ao enviar um grupo de combate naval à Península Coreana e ao ameaçar Kim com “fogo e fúria”. Na ponta oposta, irritou seus aliados japoneses e sul-coreanos ao elogiar Kim (um “cara arguto”, “apto a assumir o poder ainda muito jovem”), sugerindo a hipótese de negociações bilaterais. Entre uma aposta e outra, exasperou Xi Jinping ao atribuir à China a responsabilidade exclusiva pela solução do impasse, aproveitando para insinuar que deflagraria uma guerra comercial em caso de insucesso da empreitada.

Esgotando rapidamente suas opções, Trump volta a tocar tambores de guerra. Sua inspiração é Richard Nixon, que experimentou a “estratégia do louco” na Indochina, tentando assustar os vietnamitas com a eventualidade de um ataque nuclear. O problema é que Nixon fracassou, pois a estratégia não funciona na forma invertida, como blefe de uma superpotência contra um rival fraco – e menos ainda na Península Coreana, um cenário no qual Seul situa-se no raio de alcance da artilharia convencional do inimigo. Keating tem razão: entre Kim e Trump, o perigo maior é o segundo.

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