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 | Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: Daniel Castellano/Arquivo Gazeta do Povo

Claro, o título é um plágio descarado de um filme do Woody Allen. Eu sei disso. Mas, em minha defesa, posso dizer que sexo e privatização são assuntos tabu – mais privatização que sexo, arrisco dizer. E precisamos conversar sobre privatização. A sério, sem cair nas armadilhas de discutir as palavras em si, mas sim a realidade subjacente a elas.

Anunciada a intenção do governo federal de privatizar ativos, o tema voltou à tona. De alguma maneira retornamos à década de 90, só que sem o Sérgio Motta. E, de novo, as discussões postas se põem mais a partir de ideologias. No auditório da política brasileira, no melhor estilo Silvio Santos, há a caravana do “é público, é bom” e a do “vende mais que tá pouco”. Cada uma grita seus slogans e ninguém entende nada.

As discussões sobre o tema geram mais atrito do que fogo. No geral, somam-se argumentos jurídicos, técnicos, políticos, holísticos e metafísicos tirando o foco do tema central – privatizar, em regra, é um modo de gerir ativos que continuarão sendo públicos. Daí que esse texto pretende, do ponto de vista jurídico, chamar a atenção para as técnicas de privatização que conhecemos e seus respectivos efeitos, assim como desmistificar uma crítica muito comum quando se trata do tema, que é a que diz que privatizar afasta a capacidade de o Estado ingerir sobre essas atividades.

Primeiramente, privatização é um termo perigoso. Neste rótulo cabem muitas coisas diferentes. Para tentar criar um mínimo existencial no que se refere a esse debate, é preciso reconhecer que nosso direito reconhece atividades cuja responsabilidade pela sua prestação é do Estado. Várias atividades elementares de nossas vidas estão associadas a esse modelo que reserva à iniciativa pública certas atividades. Aqui, o Estado pode prestá-las diretamente (modelo cada vez mais raro) ou articulando-se com a iniciativa privada, por meio de contratos de parceria. Por outro lado, admite-se a intervenção estatal em setores explorados pela iniciativa privada.

Privatização é um termo perigoso. Neste rótulo cabem muitas coisas diferentes

Fixadas essas premissas, há no mínimo três possibilidades de se falar em privatização. A primeira seria a alteração normativa que transfere uma atividade que é de titularidade do Estado para a iniciativa privada. Isso implicaria que uma atividade pública passaria a ser privada. A segunda é transferir a execução de uma atividade pública prestada por um ente público (usualmente uma empresa estatal) e transferi-la para a iniciativa privada. Por fim, poderia se falar em privatização na venda de ativos empresariais do Estado para a iniciativa privada em campos abertos à iniciativa privada.

Olhando para as propostas apresentadas pelo governo, a primeira constatação a ser feita é de que estamos tratando do segundo tipo de privatização, aquela que cuida de transferir para a iniciativa privada a gestão de atividades materialmente públicas, que hoje são exploradas por entes diretamente vinculados ao Estado. É o caso dos aeroportos e também da Eletrobras. Tanto a gestão aeroportuária quanto a atividade de geração de energia continuarão sendo materialmente públicas. O efeito disso é que o Estado conserva a capacidade de ingerir sobre o modo de prestação dessas atividades, na qualidade de titular da competência material. A execução dessas atividades persistirá exigindo arranjos contratuais em que o Estado é ainda o “dono” da atividade, o que garante a capacidade de promover adequações em favor da coletividade (dentro dos limites da lei, é claro). Isso sem falar na capacidade de atuar sobre esses setores no plano regulatório. Noves fora, muda muito pouca coisa no que se refere à capacidade de atuação do Estado no modo de prestação dessas atividades. A grande preocupação que há, de que essas atividades sejam apropriadas por privados sedentos de lucro, é uma imagem para aterrorizar criancinhas. Note-se nesse sentido que tanto aeroportos como energia elétrica têm preços intensamente regulados.

O efeito mais substancial é de outra ordem. Usualmente, a prestação de atividades públicas por entes públicos permite que se promova demagogia na sua prestação. O controle estatal usualmente se convola no direcionamento político dos prestadores dessas atividades. E isso é de extremo interesse do establishment político. Isso envolve desde o loteamento dos cargos nas estatais (hoje posto em xeque pela Lei 13.303/16) até a distorção de preços com fins eleitoreiros, transferindo o custo das tarifas para o orçamento público. Outro ponto que não se pode perder de mira é que muitas vezes os interesses das estatais são capturados por grupos de pressão internos, distorcendo o nível remuneratório para muito além dos referenciais obtidos no mercado privado.

Leia também:A nova onda de privatizações e o diálogo social (artigo de Egon Bockmann e Gabriel Gomes, publicado em 28 de agosto de 2017)

Leia também:Privatizar a Eletrobras? (artigo de Adilson de Oliveira, publicado em 30 de agosto de 2017)

Com efeito, grande parte da resistência às privatizações vai na linha de tentar dizer que o Estado perderia a capacidade de garantir os interesses coletivos sobre tais atividades. Isso é simplesmente falso, do ponto de vista jurídico.

Em se discutindo a transferência da gestão de atividades públicas de entes estatais para a iniciativa privada – que é o que está na mesa no programa apresentado pelo governo –, não há perda da capacidade de atuação do Estado sobre a atividade. O que há é o afastamento de um operador público, que reage usualmente a comandos políticos. Daí que a defesa de um modelo estatal deve assumir com clareza essa premissa e indicar quais as vantagens para a sociedade de haver um agente controlado diretamente pelo Estado encarregado da prestação de atividades de interesse da sociedade. Atacar em abstrato a presença da iniciativa privada, sem deixar claro que o Estado continuará sendo o titular das atividades concedidas e ainda irá ingerir diretamente sobre a sua prestação, é argumentar a partir de slogans que não correspondem à realidade.

Bernardo Strobel Guimarães, advogado e doutor em Direito do Estado, é professor da PUCPR.
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