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Nenhuma tecnologia permeia a sociedade sem que seja moldada por forças de estruturas sociais e tecnológicas existentes, tais como valores morais, culturais, leis e outras tecnologias. O contrário também ocorre. As tecnologias moldam a sociedade por forças inerentes às mesmas, tais como inovação, expectativa de retorno financeiro de investimentos em desenvolvimento e assertividade ao desejo do público usuário. O encontro dessas forças e desses interesses gera controvérsias, inaugurando debates tais quais os que vêm acontecendo em torno do aplicativo para celular Uber. Isolados, os aspectos tecnológicos e conceituais do software – em si, extremamente simples – não renderiam as disputas ajuizadas e os intensos protestos de taxistas em Londres, Seul, Nova York, Paris, Berlim, Rio de Janeiro e, muito em breve, em Curitiba.

Cidades de culturas tão diferentes têm em comum a regulação local da atividade de transporte de passageiros. Ainda em comum, são cidades de economia capitalista que constantemente – direta ou indiretamente, certo ou errado – prezam pela autorregulação dos mercados, pela geração de valor a partir do conhecimento, pela produtividade, pela inovação e tantos outros valores consolidados no mundo ocidental e, ao que parece, também no oriente, onde Pequim recebeu sua versão do aplicativo já na metade do ano passado. Em todas as cidades onde o aplicativo foi banido ou está em uso, os atores envolvidos na controvérsia são os mesmos e os argumentos de cada parte envolvida na peleja são bastante semelhantes.

A história mostra que as tecnologias não são totalmente negativas ou positivas na sua fusão com a sociedade, sendo exemplos relevantes a energia nuclear e a rede mundial de computadores. Desenvolvidos com finalidades beligerantes, acabaram por trazer alternativas ao tratamento do câncer e democratizaram o acesso à informação e ao espaço midiático. É bastante útil no caso do Uber, portanto, que o poder público local, aquele que por representação oferta saídas políticas aos diversos embates sociais, não se assuste com a complexidade do problema e procure tirar proveito das oportunidades que surgem a partir do mapeamento dessas controvérsias.

A opção mais fácil para o político e para o servidor público é não mexer nas estruturas sociais e tecnológicas estáveis, descartando uso da força de mudança de novas tecnologias. Análises amplas e levantamento de todos os interesses, de todas as partes, evitam que se jogue fora todos os aspectos positivos que podem emergir do encontro de uma sociedade com uma nova tecnologia. Há mudanças que podem atender a uma maioria de envolvidos. Proibir certamente é mais fácil que inovar em termos de regulação. Inovar em regulação pública é imperativo na cidade com pretensão de se firmar como inteligente e criativa.

Por que não dar as licenças a todos aqueles que requisitem e se adequem a um regulamento comum e atualizado?

A novela uberiana que se aproxima de Curitiba coloca na mesa tecnológica das redes sociais e da imprensa livre e digital os argumentos de taxistas, da Uber, de usuários, dos políticos e de seus opositores. Taxistas evocam suposta concorrência desleal, pois as regulações não se aplicam aos novos motoristas. Usuários argumentam que os serviços de taxi são caros, mal prestados e não atendem a demanda, em especial nas horas de pico e dias chuvosos. A Uber aponta que os motoristas que compartilham seu automóvel pelo aplicativo passam por um cadastro que engloba as imposições do poder público local e vida pregressa no volante. Claro, esses motoristas da Uber não têm acesso às permissões de serviço de táxi, outorgadas pelo poder público local. Alguns taxistas, e por vezes algumas prefeituras, argumentam que não é seguro para o usuário nem para o motorista, em que pese que os nomes, a viagem e seu trajeto fiquem registrados nos servidores da Uber. O pagamento é feito exclusivamente por cartão de crédito e o motorista recebe pela corrida em sua conta bancária pessoal. Tanto usuário como motorista são qualificados mutuamente e imediatamente após a corrida, o que exige das partes um comportamento honesto e cordial, sob pena de exclusão. Prefeituras se limitam a propalar o pressuposto legal, sem se preocupar em ponderar e ganhar com a controvérsia; argumentam que é serviço regulamentado e que o Uber é transporte ilegal de passageiros.

O poder público deve utilizar o contexto para atender ao interesse público. Se por um lado o serviço precisa ser regulamentado para garantir segurança aos usuários e parâmetros de remuneração e proteção ao trabalhador do volante, a burocracia envolvida nas permissões de táxi vem sendo usada como instrumento de protecionismo a determinados empresários do setor, que compram, concentram, vendem e alugam ilegalmente – à margem do regulamento, portanto – as permissões de táxi. Não trabalham na atividade, apenas auferem lucros por deter os meios. Permissões que seriam destinadas a trabalhadores individuais são agrupadas em conglomerados empresariais que exercem influência política e econômica na hora de conceber regulamento, afrouxar fiscalização e obter mais permissões. Não é à toa que uma outra tecnologia associada aos táxis de Curitiba recentemente foi refutada pelos permissionários de táxi: a identificação biométrica dos motoristas dentro dos táxis – pois, pelo regulamento, estes devem trabalhar um mínimo de horas como motoristas.

Outros aplicativos mais simples, como o 99 Taxi e Easy Taxi, usados para chamar um táxi pelo celular, chegaram a ser proibidos em Curitiba. As multas aos taxistas cessaram quando o assunto foi parar na imprensa e os detentores das permissões perceberam que aquilo os livraria do pagamento mensal às antigas centrais de rádio-táxi, que justamente recebiam, organizavam e distribuíam chamadas aos seus associados – exatamente o que fazem esses aplicativos aos taxistas, de forma gratuita. Daí a necessidade de usar a força de uma empresa de tecnologia global como a Uber para atualizar essas relações sociais vergonhosas e improdutivas, para dizer o mínimo.

Não assumir que o atual regulamento – em Curitiba e outras cidades – precisa ser atualizado significa aceitar passivamente as resultantes históricas da aplicação do mesmo: atividade empresarial concentrada e predatória, contrária aos interesses de ampla maioria da sociedade. Freio ao desenvolvimento econômico e à geração de empregos, maiores tarifas aos usuários, baixa eficiência e retorno financeiro da hora trabalhada pelos motoristas. Não é preciso ser um crítico especializado para questionar a razão das três décadas passadas com o mesmo número de táxis numa metrópole como Curitiba, que explodiu demograficamente no período. Em que pese os avanços recentes na expansão da frota, com novas licenças expedidas, houve milhares de interessados nos postos de trabalho e na prestação dos serviços não atendidos. Chegamos a uma situação patética de verificar clamor popular por mais táxis na cidade.

A concentração das licenças na mão de quem não dirige perdura, evitando que motoristas autônomos possam aplicar descontos nas referências tarifárias conforme lhes convier. Os empresários donos das licenças, óbvio, querem manter as tarifas que garantem as margens de lucro. Por que, então, não dar as licenças a todos aqueles que requisitem e se adequem a um regulamento comum e atualizado, eliminando a necessidade de licitação das novas licenças e deixando que o mercado regule o tamanho da atividade? O primeiro efeito desta medida seria acabar com o o valor cobrado – ilegalmente – pelo aluguel e venda destas permissões de táxi. Também traria autonomia, melhoria das condições de trabalho e de renda ao motorista de táxi que, por não ter uma licença, se sujeita a pagar diárias pesadas aos proprietários destas. Há motoristas que ficam 12 horas consecutivas ao volante para conseguir auferir sua renda e pagar ao proprietário da placa. Trabalham sem os benefícios e seguridades de um trabalhador registrado, claro.

Estamos diante de uma oportunidade de modernizar, ampliar oferta e concorrência, controle e segurança da atividade, aumentar o conforto e conveniência do serviço, reduzindo custos e tarifas de referência. Podemos adequar o regulamento a esta e a outras plataformas tecnológicas que já concorrem com o Uber mundo afora, sem investir um centavo de recurso público além daquele gasto para que cabeças pensem a favor do interesse público. Podemos também, infelizmente, jogar a oportunidade fora e repetir à exaustão o mantra de que vivemos em uma cidade inteligente e inovadora, até que o orgulho bairrista se sobreponha à realidade desafiadora.

Rafael Milani Medeiros é designer, mestre e doutorando em Gestão Urbana pela PUCPR e pela Universidade Técnica de Berlim.
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