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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Ao contrário de reiterados prognósticos pessimistas para o cenário mundial, o ano começou com auspiciosa notícia de abrandamento da crise coreana com retomada do diálogo entre Seul e Pyongyang. Impensável há poucas dias, com as ameaças natalinas de Kim Jong-un tamborilando sobre seus botões nucleares, respondida pelos tweets trumpianos de “fúria e fogo”, acabou por prevalecer o apaziguamento, após dois anos de diplomacia do insulto, com gestos furiosos e corrida armamentista.

Como consequência da inesperada conferência, o anúncio de envio de delegação do norte aos Jogos Olímpicos de Inverno de PyeongChang, no sul, foi expressivo gesto de candente simbologia, saudado desde logo pelo Comitê Olímpico Internacional. Afinal, os Jogos Olímpicos foram, desde a tradição helênica, a celebração da concórdia e aproximação dos povos, como vontade dos deuses e dos homens.

Que fatores poderiam ter agora destravado o ânimo de guerra entre as Coreias, que projetava perigos de ataques nucleares, com consequências imprevisíveis para a humanidade? Nesse sentido, a recente mensagem de ano-novo do secretário-geral da ONU, António Guterres, não utilizou meias palavras: “o mundo está em alerta vermelho e nunca o risco nuclear foi tão presente!” De fato, o bate-boca entre Trump e Kim, ambos notáveis pelo primitivismo inconsequente de suas ações, gera procedentes temores de ataques atômicos, o que já se estimava proscrito desde o fim da Guerra Fria.

China e Rússia querem a paz, mas não a ponto de desestabilizar a lógica de poder belicista de Kim Jong-un

Para agravar o quadro de insegurança coletiva, a volta à barbárie parece estar em voga, com a proliferação de nacionalismos, xenofobias, separatismos e intolerâncias, a par de retrocessos na defesa climática, na solução pacífica de controvérsias e no livre comércio, que aproxima os povos, distribui riqueza e fomenta a paz. São vozes de atraso que ganham volume, de todos os matizes e em todos os continentes, com o indefectível discurso binário do “nós contra eles”. Perigosos líderes negativos que vão aparecendo, sequiosos de poder e em busca de inimigos externos reais ou imaginários, a serem aniquilados com todos os meios, com todas as forças, com todos os ódios.

Nesse contexto, a vertiginosa mudança na relação de beligerância entre as duas Coreias infelizmente não deve ser tomada com excessivo otimismo. A história das relações internacionais demonstra que modificações abruptas de cenários sedimentados de beligerância nunca são o que parecem.

Claro que o latente conflito coreano, remanescente fronteira da Guerra Fria, de uma guerra juridicamente em curso, sem tratado de paz desde o fim das hostilidades, em 1953, não irá agora resolver-se definitivamente, assim, sem mais, apenas pela miraculosa prevalência do espírito olímpico. São muitos os fatores que determinam a inopinada détente, tantos quantos são os atores envolvidos no equilíbrio de poder na bacia do Pacífico, a incluir China, Rússia, Japão e Taiwan. E, como portentoso outsider, os Estados Unidos e toda uma máquina de guerra projetada ao Oriente, fronteira avançada de sua costa oeste, marcada pelo trauma de Pearl Harbor. O tratado que institui as Nações Unidas, bem a propósito, não foi sem razão celebrado em San Francisco, na Califórnia, emblemática cidade portuária voltada ao que sempre será o latente front do Pacífico.

Carlos Ramalhete: As Coreias e a paz (4 de janeiro de 2018)

Demétrio Magnoli: Três enganos sobre Kim (10 de setembro de 2017)

Para China e Rússia, em particular, resta claro que o fim do regime ditatorial de Pyongyang é intolerável, em rara agenda de comum interesse. Seria o fim da divisão coreana, a queda do último Muro de Berlim, com advento de país unificado e forte, potência regional pró-ocidente, um outro Japão aliado aos Estados Unidos, a colocar em xeque interesses econômicos indisponíveis. Por certo, como contendores do caricato ditador, China e Rússia querem a paz, mas não a ponto de desestabilizar a lógica de poder belicista de Kim Jong-un. Logo, não é imponderável que se utilizem agendas duplas, a fomentar tanto a cooperação como o conflito, como muitas vezes ocorreu na antiga relação sino-soviética, nos velhos tempos da Guerra Fria.

Se conflitos não servem para ninguém, máxime se nucleares, a manutenção de tensões e a instrumentalização do perigo da guerra nuclear podem representar importantes ativos diplomáticos de agenda inconfessável. Também não seria crível que Xi Jinping e Vladimir Putin viessem a almejar de fato a plena pacificação da região, o que geraria perda de poder como membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, detentores de direito de veto, particularmente poderosos em tempos de crise. Enfim, um complexo jogo de xadrez, no qual palavras dissimulam intenções, o que com frequência ocorre na política internacional.

Embora haja motivos para comemorar a volta das negociações pacíficas na conturbada Península da Coreia, a preservação da paz sem desarmamento nuclear, como se está a delinear, dando sobrevida ao regime agonizante do exótico ditador, pode ser fórmula de lamentável continuísmo. Segue o alerta vermelho e a humanidade em risco. Também em política externa, vez por outra, as coisas precisam mudar para que continuem iguais.

Jorge Fontoura é advogado e professor.
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