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| Foto: Evaristo Sá/AFP

Não acredito na possibilidade de desapego no mundo contemporâneo em que desapego é em si um produto. Por exemplo: que tal desapegar um pouco no Butão? Ou em Noronha? Belo espaço natural. Nunca um mosquito custou tão caro.

Desapegar no mundo da eficácia e do resultado é coisa de gente fina. Mortal mesmo vende a mãe pra desapegar um pouco no domingo. Sei que está na moda o desapego e que os tontos ficam nas redes sociais falando disso. Como falam também que “Gratidão!” (com as mãozinhas juntas) faz você dormir bem à noite.

Qualquer pessoa minimamente treinada no repertório das grandes religiões e suas distintas formas de espiritualidade (de onde vêm ideias como gratidão e desapego) sabe que, se você pratica uma dessas virtudes “pra dormir bem à noite”, você não as está praticando de verdade. Ninguém é grato pra conseguir algo ou desapega viajando de business class.

Ninguém é grato pra conseguir algo ou desapega viajando de business class.

A ideia de desapego é bem séria, seja na espiritualidade, seja na filosofia, a começar pela grega. No grego, aphalé panta significa essa ideia de “desapegar-se de tudo que é ou tudo que existe” no chamado neoplatonismo. Palavras como apathéia ou ataraxia estão muito próximas dessa noção de desapego no estoicismo e no ceticismo. No budismo, no cristianismo, no hinduísmo, a mesma temática. Na mística medieval cristã ou islâmica, ideias como “desprendimento” ou “aniquilamento” também retomam a mesma temática do “prazer” que seria se desapegar das coisas do mundo. Na literatura de peso, Liev Tolstói (1828-1910) é um representante importante dessa busca. Em seu último romance, Ressurreição, o personagem principal, Nerhliudov, passa todo o romance em busca do desapego, sonho do próprio Tolstói.

Quando se fala de desapego das coisas do mundo, a primeira ideia que vem à mente é o desapegar-se das coisas materiais. E aí, em se tratando de nosso mundo contemporâneo, já fica difícil, uma vez que quase tudo que importa passa pela aquisição de um bem material, mesmo que este seja uma passagem pra Mongólia. Ou uma pousada na praia. Tudo pago em diárias, o que significa que você tem de pagar pra desapegar. Porque, lembremos, quem mora embaixo do Minhocão não é um desapegado.

A busca do desapego deita raízes no fato de que o mundo cansa. Numa sociedade em que o cansaço é um grande “passivo psicológico” como a nossa, desejar o desapego é absolutamente normal. O problema é que, como em toda demanda de verdade, o mercado captura a própria demanda “natural” e devolve como commodity. Precifica a busca e vende pra você de volta.

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A literatura de autoajuda é a forma mais banal desse processo, prometendo a você que, na compra do livro X ou na participação do workshop Y, você conseguirá o tal do desapego. Evidente que mentem. O desapego é um processo doloroso que implica, na maioria dos casos, perdas profundas. Não é coisa que sirva ao papinho da “vida é feita de escolhas”. Está mais para experiência avassaladora do fracasso do que para o tédio do sucesso. Desapegar-se é próximo da “calma trágica”, descrita em personagens como Eteocles (filho de Édipo), da trilogia tebana de Ésquilo, ou Antígona (filha de Édipo), da tragédia que carrega seu nome no título, de Sófocles. Ésquilo viveu entre os séculos 5.º e 6.º a.C. e Sófocles, no século 5.º a.C.

O desapego fala do cansaço do desejo. E nosso mundo gira ao redor do desejo. Fala do perder-se, não da obsessão por uma alimentação balanceada. O “objeto” mais importante no desapego (aquilo de que você deve desapegar-se se quiser pensar a sério em fazê-lo) é o próprio Eu. E aí, a coisa pega. “Ser você mesmo” cansa mais do que escalar o Everest. O Eu é um eterno adolescente chato em busca de autoestima. Aliás, a economia da autoestima é sinal de apego.

O filósofo Emil Cioran (1911-1995) escreveu em seu diário “tornar-se modesto por cansaço, por falta de curiosidade”. Isso é desapego. Algo a que você chega não pela vontade soberana, mas pela exaustão fisiológica. Aliás, parafraseando o próprio Cioran sobre a preguiça, eu diria que desapego “é o ceticismo da matéria”. Boa semana.

Luiz Felipe Pondé, escritor, filósofo e ensaísta, é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Teologia da PUC-SP e da Faculdade de Comunicação da Faap.
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