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Os últimos acontecimentos noticiados nas mídias reacenderam os debates acerca da violência sexual contra as mulheres e das dificuldades jurídicas na proteção das vítimas. Os eventos recentes, e tantos outros, nos trazem uma sensação em comum: a grande impunidade para a violência sexual contra a mulher.

Para que possamos entender esses problemas, é necessário fazer uma breve retrospectiva do tratamento jurídico que os crimes sexuais tiveram no Brasil. O Código Penal Brasileiro foi promulgado no ano de 1940: o capítulo que trazia os crimes sexuais era inicialmente chamado de “crimes contra os costumes”, já que não se tutelava a dignidade sexual propriamente dita, e sim os costumes e a moral da sociedade.

Para se ter uma ideia, até o ano de 2005 a proteção da mulher dependia de algumas condições, como ser ela uma “mulher honesta” ou virgem. Também até 2005 estava em vigor a previsão de que a pena do estuprador estaria extinta caso ele se casasse com a vítima; caso a vítima se casasse com um terceiro, ele teria sua pena reduzida. O raciocí́nio era mais ou menos o seguinte: se, mesmo depois do crime e da consequente “desvalorizaçã̃o” a que a mulher foi submetida no mercado competitivo dos casamentos, ela ainda conseguisse um noivo que aceitasse sustentá́-la para o resto da vida, cessar-se-ia, então, o principal dano decorrente do crime praticado.

A legislação ainda deixa invisíveis diversas formas de violência

Outro grande avanço legislativo veio somente no ano de 2009. Até então, somente poderia ser considerado estupro a forçada penetração vaginal, o que excluía da zona de proteção pessoas do sexo masculino, especialmente crianças e adolescentes. Outras formas de violência diversas da penetração vaginal, mas que também são muito impactantes nas vítimas, eram tratadas como “atentado violento ao pudor”, um crime menos grave. Com a alteração da lei, todo e qualquer ato libidinoso, cometido mediante violência ou grave ameaça, passou a ser considerado estupro. Mas a legislação ainda deixa invisíveis diversas formas de violência e sua aplicação depende da interpretação dos operadores do direito, cuja mentalidade machista permanece inalterada.

Assim, não admira haver uma grande urgência na reforma penal dos crimes sexuais, fator que suscitou a tramitação de diversos projetos de lei no Congresso Nacional nos últimos dias. A Secretaria da Mulher do Congresso Nacional, inclusive, buscou consultar a população antes de emitir o seu parecer e relatoria no PL 5.452/2016, apensado a uma série de outros PLs de natureza semelhante. Corretamente, foi dada a oportunidade para que as maiores interessadas no tema possam opinar: as mulheres.

Assim, após ouvir integrantes de movimentos sociais e feministas, além de especialistas em direito da mulher, merece destaque a relatoria oferecida pela deputada federal Soraya Santos (PMDB-RJ), que sugeriu mudanças legislativas que buscam atender de maneira mais satisfatória à realidade que enfrentamos. O novo projeto é bastante extenso e traz uma grande e profunda reforma no Código Penal.

Leia também: Por uma vida segura e livre de violência para as mulheres (artigo de Xênia Mello, publicado em 7 de junho de 2016)

Em primeiro lugar, busca tornar incondicionada a ação penal pública dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulneráveis. Essa iniciativa retiraria de vez o problema da decadência de apenas seis meses e do seu exíguo prazo para a realização da denúncia. Afinal, se até os crimes patrimoniais são de natureza incondicionada, não faz sentido que os crimes de gênero não recebam o mesmo tratamento.

Além disso, traz um tipo penal intermediário que poderia contemplar de maneira satisfatória os assédios sexuais sofridos cotidianamente pelas mulheres, em especial nos espaços públicos. Trata-se de crimes de estupro cometidos sem que haja o emprego de violência ou grave ameaça à vítima. Nessa hipótese, será possível enquadrar como estupro, mas com pena mais adequada (de três a cinco anos), atos libidinosos realizados sem o consentimento da vítima.

O projeto também prevê uma série de agravantes que acarretariam em aumento da pena, como o concurso de pessoas (estupro coletivo), a transmissão de doenças venéreas ou casos em que o agente abusa da relação de confiança que estabeleceu com a vítima. Cumpre destacar que a maior parte dos crimes contra a dignidade sexual não acontece em becos escuros, como se costuma pensar: é cometida por pessoas do convívio das vítimas, de modo que essa sensibilidade legislativa é relevante para visibilizar esse tipo de prática.

Leia também:Até quando seremos assassinadas pelo machismo? (artigo de Tania Tait, publicado em 25 de março de 2015)

Outro ponto que merece nota é a previsão de “extorsão sexual” como agravante. Trata-se de crime cometido principalmente na internet, no qual o criminoso, detentor de registros audiovisuais com conteúdo íntimo da vítima, utiliza a ameaça de divulgação desse conteúdo como arma para constranger a vítima a praticar atos libidinosos diversos, presencialmente ou a distância, utilizando meios telemáticos.

O projeto ainda cria o crime de divulgação de cenas de estupro e da pornografia de vingança, isto é, quando fotos, vídeos e demais conteúdos de natureza sexual são produzidos e/ou divulgados sem o consentimento da vítima e usados especialmente como formas de retaliação pelo fim de relacionamentos.

Sem o cuidado de ouvir as mulheres, o risco de não se verificar onde estão os gargalos é alto, o que dificulta o real oferecimento de soluções mais precisas e duradouras. Por mais que haja, de fato, uma urgência na mudança legislativa, e por mais que se deva aproveitar o cenário nacional propício para entabular essas alterações, o diálogo com a sociedade é imprescindível. Em um país onde a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, precisamos de leis e de procedimentos mais acessíveis e em conformidade com a sua realidade. Sem isso, não há como esperar que consigamos superar este triste dado e garantir às mulheres a dignidade, segurança e a devida responsabilização dos agressores.

Ana Paula Braga e Marina Ruzzi são advogadas especialistas em direito da mulher e integrantes da Rede Feminista de Juristas (Defemde).
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