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A laicidade do Estado, no Brasil, é representativa de uma forma de encarar os valores políticos, especialmente os valores “republicanos”: ocorre uma adesão à la carte, em que se decide o quê, quando e em que medida respeitarão esses valores. Isso ocorre mesmo quando os valores são “fundamentais”, isto é, quando eles constituem os próprios fundamentos da vida coletiva na pólis. No caso da laicidade, os grupos sociais apresentam-se favoráveis ou contrários a ela de acordo com o poder de que dispõem: quanto mais poderosos, menos simpáticos.

O que significa a laicidade? Significa que o Estado não pode interferir nem sofrer interferência das instituições religiosas; por outro lado, as crenças religiosas tornam-se tema de foro íntimo, a cujo respeito não cabe nenhuma ação do Estado no sentido de estipular o que é correto, bom ou adequado. Se entendermos por “democracia” o que diz respeito à vontade popular, decidida pela vontade da maioria, e se entendermos por “república” o que se refere às condições sociais e institucionais que garantem as liberdades públicas, torna-se claro que a laicidade não é uma questão democrática, e sim republicana.

Não cabe nenhuma ação do Estado no sentido de estipular o que é correto, bom ou adequado

Deus laico ou Deus religioso?

A Constituição é a expressão maior da vontade de uma nação. É onde suas aspirações e desejos se projetam sobre as gerações futuras, consolidando assim a ideia de nacionalidade, conforme expôs Emmanuel Sieyès em sua obra Qu’est-ce que le Tiers-État?.

Leia o artigo do advogado Bruno Dornelles

O Projeto de Emenda Constitucional 99/2011 (PEC 99/11), de autoria do deputado federal João Campos (PSDB-GO), propõe que instituições religiosas de âmbito nacional possam interpor no Supremo Tribunal Federal (STF) ações de inconstitucionalidade ou ações declaratórias de constitucionalidade – e incorre nos problemas indicados acima. O propositor da proposta tem se destacado como defensor de pauta ligada à polícia e às religiões evangélicas. Além disso, ele integra a Frente Parlamentar para a Defesa da Liberdade Religiosa, que justapõe defensores da laicidade, como Jean Wyllys, e aqueles para quem “liberdade religiosa” não significa muito além da possibilidade de imposição da própria crença aos demais.

Entre as justificativas apresentadas para a PEC 99 encontra-se a afirmação de que a maioria da população brasileira é cristã; assim, caberia às entidades religiosas de âmbito nacional poder discutir no STF as decisões tomadas pelos poderes Legislativo e Executivo afeitos à “religião”. Isso tem vários problemas.

Em primeiro lugar, em vez de apoiar a laicidade, a PEC 99 vai diretamente contra ela, ao passar a “religião” do foro íntimo para matéria discutida e regulada pelo Estado. Isso se baseia também na ideia de que, como a maioria da população brasileira é cristã, ou religiosa, cumpriria permitir que as entidades religiosas e cristãs definissem para todos o que é a “religião”, a partir das suas próprias concepções. Ora, em segundo lugar, não há o mínimo consenso a respeito do que é a “religião”: cada grupo político, filosófico e religioso tem sua própria definição. A isso se soma o fato de que não existe somente uma religião cristã, mas inúmeras, cada uma com suas próprias concepções sobre o que é bom, justo, correto etc.; dessa forma, o que uma igreja julgar adequado com certeza será entendido como errado por outra(s): a laicidade vem precisamente evitar esse tipo de problema.

Em terceiro lugar, deve-se notar que as associações “religiosas” não poderão interpor ações sobre a constitucionalidade de leis relativas apenas à “religião”, mas sobre qualquer tema: acabando de vez com a laicidade, tais associações imiscuir-se-ão em áreas que simplesmente não lhes dizem respeito. Na sociedade não há apenas temas “religiosos”, mas também culturais, esportivos, científicos, industriais, comerciais, musicais etc.: nenhuma das associações representativas desses temas propõe a possibilidade de interpor no STF ações relativas à constitucionalidade de leis.

Em suma: a PEC 99 é um erro e um atentado não somente à laicidade, mas à própria república.

Gustavo Biscaia de Lacerda é pós-doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.
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