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Recentemente, a ação promovida na Cracolândia de São Paulo reativou o debate ideológico sobre até que ponto o poder público pode intervir em escolhas individuais. De um lado está o proibicionismo ao consumo. Do outro, um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem parar de usá-las.

Esta segunda vertente, definida como política de redução de danos, é a política oficial do Ministério da Saúde, baseada nos pilares constitucionais de que ”todo cidadão tem o direito à sua liberdade”. Na prática, essa abordagem não proibicionista é promovida de várias formas, de acordo com cada serviço de reabilitação – da autonomia do usuário, responsabilizando-o por suas escolhas e evitando danos colaterais, a intervenções que priorizam a abstinência, sempre respeitando a liberdade de escolha.

E quando a escolha é não tratar? Se tal escolha é caracterizada pela busca compulsiva, pelo desejo obsessivo, pela vontade incontrolável de obter a droga, o usuário é diagnosticado como dependente químico. Diante desse diagnóstico, ele pode ser internado mesmo contra a sua vontade, sob a responsabilidade de familiares ou do Ministério Público, também baseando-se na Constituição, segundo a qual “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”.

Uma vez que um grupo de usuários se organiza, cria-se uma subcultura da droga, contaminando a sociedade

Apesar de o tratamento involuntário não ser eficaz em curto tempo, períodos prolongados de abstinência – de semanas a meses – podem provocar uma neuromodulação em centros nervosos, o que diminui o desejo incontrolável pelo uso. Por isso, após a internação involuntária, deve-se buscar, por meio de diferentes técnicas motivacionais, a adoção de um tratamento voluntário.

O risco da dependência química está relacionado à vulnerabilidade individual (componente genético e ambiental) e à exposição social à droga. Ou seja, uma vez que um grupo de usuários se organiza, cria-se uma subcultura da droga, contaminando a sociedade ao seu redor. Isso explica o termo “contágio psicossocial”. Se o uso em locais públicos não for combatido, há um grande risco de aumentar a probabilidade de futuros dependentes químicos.

Mas o poder público tem o direito de privar a liberdade individual para garantir o bem comum? O que se busca é garantir também o bem individual, já que o uso abusivo de drogas está ligado a riscos pessoais. As práticas de redução de danos promovem o autocuidado com a saúde e a busca por direitos que também são essenciais ao regime democrático. No nível mais geral, a redução de danos defende a ideia de que, se não podemos eliminar as drogas, pelo menos podemos diminuir os danos relacionados ao seu uso.

Internação é arbitrariedade:Deletar a Cracolândia não é solução (artigo de Ipojucan Calixto Fraiz, professor dos cursos de Medicina da UFPR e da UP)

Quem está a favor da redução de danos ressalta a tolerância com os usuários, respeitando-os como cidadãos e escutando suas necessidades. Contudo, diminuir o dano para alguns dependentes não significa que diminuiremos o dano global da sociedade, pois melhorar a vida dos usuários de drogas não resulta em menores riscos para os familiares ou a outros.

Os dois modelos – o antiproibicionista, de redução de danos; ou o proibicionista, de abstinência com criteriosos internamentos involuntários – têm prós e contras, mas poucos optam hoje por debater um modelo único. O desafio, como política pública, é retirar o que há de melhor em cada modelo, combinando harmoniosamente as estratégias: respeitar o usuário com dignidade, como detentor de opinião, e compreendê-lo com comportamento condicionado nocivo, tendo o dever ativo e empático de tratá-lo.

Hilário de Oliveira, psiquiatra, é médico do Hospital Marcelino Champagnat.
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