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Mais uma vez o leitor estará sob o domínio da dúvida, que é o campo preferido em que Machado de Assis prefere travar o bom combate com seu leitor. O prazer de digladiar conosco já é proverbial. Seu interesse pela sondagem dos cantos obscuros da alma humana continua uma rocha, firme e estabelecido no interior da mente dos protagonistas. Se os homens são iguais? São! Tanto quanto uma flor despetalada de plantas diferentes e que empalidece ao sabor das estações. Os sentimentos são perenes, mas não ousam entrar mais a fundo na caverna escura e funda que é a vida dos personagens de “O Enfermeiro”.

Esse conto magistral, que integra Várias Histórias, aponta para os enigmáticos personagens que passo a colocar sob os holofotes de um palco de teatro. Resta observar os movimentos e escolhas que estarão em cena. A curta história torna longa a curiosidade para se saber o que o coronel Felisberto – homem já senil, muito doente, de temperamento quase insuportável – trama nos cantos obscuros do espírito. Outro ator desse cenário é o enfermeiro Procópio, contratado pelo coronel para cuidar dele em seus últimos dias. Diz-se que seus males são mortais e incuráveis. A morte natural é para breve.

O temperamento do ancião representa uma tortura para os criados e seu cuidador, o jovem enfermeiro, ex-estudante de Teologia, do qual conhecemos o nome completo: Procópio José Gomes Valongo, que faz o papel de narrador. Acertados, o paciente e o cuidador começam um relacionamento de início ameno, mas que logo se torna insuportável. Com os achaques e dores, o coronel vai se tornando um suplício para os que o rodeiam. Descarrega sua fúria até sobre os objetos materiais, que atira com raiva sobre os criados. Seu estado de depauperação física o torna imprevisível. Parece – e é – mau. É preciso não deixar passar a informação de que toda a história é narrada por Procópio, o que implica a possibilidade de o discurso se tornar parcial e “contaminado”, à medida que seus sentimentos sobre o patrão são aceitos de uma forma positiva ou negativa.

Para Machado ninguém é perfeito; todos alternam a perversidade com pequenos gestos de migalhas de gratidão

O coronel Felisberto, diagnosticado como portador de doença terminal, por vezes descarrega sua fúria em qualquer dos empregados que estiver ao alcance da mão. O médico diagnostica males incuráveis. Não há especificação das doenças, mas, como é um homem com idade avançada, um desfecho trágico é absolutamente possível. Em suma, pode morrer a qualquer momento. ”É um ser humano insuportável e talvez devesse ser morto”. Murmura nas entranhas o narrador. Procópio até à pouco foi uma exceção, mas é também uma vítima que vai se envenenando.

O narrador é jovem e teólogo, o que complica seus medos, suas culpas e o receio de ser descoberto. Assim, o relacionamento dos dois homens chega ao cume da birra e da intolerância: até agressões morais e físicas ocorrem com frequência.

O leitor pode tentar esclarecer: por que esse homem é tão mau? E o paciente é, de fato, um monstro do mal? O leitor verá que a dupla – o cuidador e o irascível Felisberto – tem algo em comum, muito sinistro. Melhor engolir em seco, leitor, pois os dois “cadáveres morais” logo mostrarão a cara. Lembrem-se: para Machado ninguém é perfeito; todos alternam a perversidade com pequenos gestos de migalhas de gratidão.

Quando o coronel insulta o enfermeiro, atinge-se assim o ápice da montanha de rancores entre ambos: Felisberto é tão cruel que Procópio resolve matá-lo e o faz por asfixia e estrangulamento. Vem o remorso, em marcha acelerada, cobrir o coração com o toldo da culpa. “Bem, agora está feito”. Fala lá com seus botões, o criminoso. Não devemos esquecer que ele ignora a violação moral que foi o assassinato do seu “paciente”. Diz ter matado por acidente; que não visava esse resultado. Matou por impulso.

O desfecho é surpreendente, pois quem escreve é Machado de Assis. O criminoso teme ser descoberto. Vem de encontro a Procópio uma enorme onda de sentimentos de culpa. Acho que o leitor deve lembrar como o coronel é assassinado: ele é esganado e sufocado com um travesseiro. O sentimento de culpa do assassino, após o enterro do personagem, anda pelos cantos, corroendo-se. Mas está feito.

Tudo agora é irreversível. Vai-se o crime, fica o homem. Impune? Será? Após o enterro, Procópio já vai se sentindo mais aliviado da culpa, quando lhe desponta surpresa inesperada. Dias depois, quando foi aberto o testamento, Procópio é o herdeiro da fortuna do coronel. Sua mente fica aturdida e confusa. Receber uma herança de quem é morto pelo herdeiro assassino é uma ironia insuportável. Fica em dúvida, sem saber ao certo o que fazer: aceita ou não? E o leitor, o que faria? Depois de algum tempo, aceita; o remorso torna-se gratidão. Manda providenciar o enterro. Procópio faz um belo jazigo para seu benfeitor. Providencia uma polpuda doação à paróquia. Destina quantias razoáveis a instituições de caridade. Ele, afinal, se perdoa. Procópio muda de classe social e de vida para realizar alguns projetos de gastar bem a fortuna do coronel Felisberto.

Consciência apaziguada, o vilão da história já antevê longas viagens, por terra e por mar. Sua culpa se transforma em aceitação e conclui que, como o coronel portava doença mortal, na verdade ele o ajuda, pois é considerado candidato a “encostar as canelas” a qualquer momento. E o remorso, leitor amigo? Esse é abafado pelo poder do dinheiro que traz conforto. E a culpa? Creia nela quem pode. Acho que as pessoas podem lidar com os extremos: o temor versus o conforto, que sempre vence. Ou não!

E ao vencedor? E o assassino? Uma nova vida sem complexos de culpa. Você aceitaria essa chantagem póstuma que o coronel Felisberto arma para fustigar um homem ambicioso, que, afinal, não tem nenhum escrúpulo? E quanto à máxima “o crime não compensa?”

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