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A virtude da epiqueia – literalmente, “ser razoável acima de tudo” –, também chamada equidade, é uma das mais nítidas marcas de civilização. Ela demanda que a pessoa em cargo de autoridade perceba que a lei deve servir ao homem, não o homem à lei. Ou, como disse o Cristo, que “o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27). Essa nobre virtude consiste em agir de forma a servir àquilo que a letra da lei serve, ou antes deveria servir, sem jamais tomar esta letra como um fim em si mesmo. Afinal, a lei não é a justiça, mas apenas um dos muitos instrumentos que devem conduzir a ela.

A ausência desta virtude leva inexoravelmente à injustiça, cometida em nome da lei que deveria servir para proteger dela. É o que vem acontecendo nos repetidos casos de sequestro de crianças ou adolescentes brasileiros pelo governo americano, sob o pretexto de coibir a migração ilegal àquele país.

A lei não é a justiça, mas apenas um dos muitos instrumentos que devem conduzir a ela

Um menininho de 12 anos de idade foi mantido em cativeiro pelo governo americano em maio, quando seu pai foi deportado e, por alguma razão ignota, ele foi sequestrado pelas autoridades em vez de ser deportado junto. Duas mocinhas, cuja beleza e alegria nas fotos publicadas fizeram com que o escândalo fosse maior, foram igualmente sequestradas pelas autoridades americanas, retidas e submetidas a tratamentos vexatórios. Uma delas teve de tomar dez vacinas injetadas; ora, para que vacinar alguém que se vai deportar, se não para humilhá-la, apenas?

Espanta-me que ainda haja quem queira ir ter em território dominado por autoridades tão evidentemente desprovidas de epiqueia e de outras notas da civilização. Eu não teria interesse algum em ir aos Estados Unidos, como tampouco teria em ir à Coreia do Norte ou à Arábia Saudita. Prefiro a liberdade e o respeito, e, com todos os nossos defeitos, ainda não descemos tão baixo.

As autoridades dos EUA podem se considerar no direito de expulsar manu militari quem o adentra. Faz sentido, se lembrarmos que seu território foi tomado de seus ocupantes anteriores pela força e pelo genocídio. Mais de século se passou desde então, contudo, e seria possível esperar que algum sinal de civilização se houvesse infiltrado na mente dos governantes.

Vemos, contudo, que sequestrar, destratar e humilhar crianças e mocinhas inocentes como forma de culto à letra da lei continua sendo algo bem-visto por aquelas bandas. “Quem mandou violar a Lei, a sacrossanta Lei?” é uma reação lá comum ao espanto dos civilizados com tais casos. A ausência total de epiqueia, herdada de sua origem na teocracia calvinista, é sinal ineludível de que tinha razão Lévi-Strauss ao dizer que os EUA “saíram direto da barbárie à decadência, sem jamais conhecer civilização”.

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