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Sabe aqueles momentos Gonzaguinha, em que ficamos nos perguntando: “e a vida? E a vida o que é?” Momentos em que o cansaço vence e a consciência se força a fechar para balanço de tudo que fizemos, somos e queremos. Momentos em que a distração não funciona e toda fuga é inútil. Costumam acontecer quando mais uma tentativa de preencher de sentido a vida foi frustrada. Por exemplo, a terapia que era tão boa não resolve mais; ou o remedinho que era tão provisório e se tornou definitivo esgotou seu poder de alívio; ou a sugestão de que é preciso, de novo, mudar o “estilo de vida” já não convence. Aqueles momentos em que, de tão impotentes, ficamos prostrados, sofrendo e esperando que passem. Sabe quais?

Sempre tenho desses momentos quando releio a passagem da conversão de Agostinho em suas Confissões. O homem achava tinha se convertido e parecia mesmo. Estava na igreja havia um bom tempo, estudava com afinco a doutrina, tinha em Santo Ambrósio um mestre, mas “levava minha vida habitual com angústia crescente”. Até que um dia um amigo apareceu, Ponticiano, contando a história de Santo Antão e do que se passou com dois companheiros seus que, depois de lerem A Vida de Santo Antão, escrita por Santo Atanásio, converteram-se na hora, depois de se perguntarem: “Dize-me, te peço, onde pretendemos chegar com todos estes nossos trabalhos? Que buscamos? Qual a finalidade do nosso labor?” Boas perguntas, não?

Há momentos em que, de tão impotentes, ficamos prostrados, sofrendo e esperando que passem

Agostinho escutava a história e se via nu diante de si: “Eu me via e enchia-me de horror, mas não tinha para onde fugir. Se tentava afastar o olhar de mim mesmo, Ponticiano prosseguia com a narração, e de novo me punha diante de mim, e me empurravas diante de meus olhos, para que eu descobrisse minha iniquidade e a odiasse. Eu bem a conhecia, mas a dissimulava, fingia não ver, esquecia”. Já se tinham passado 12 anos desde que começara a se aproximar de Deus e percebia, naquele momento, quão pouco caminhara, lembrando do que pedira logo no início: “Dá-me castidade e continência, mas não agora”. Envergonhado, caiu numa angústia profunda.

Sob forte emoção, foi ao pequeno jardim da casa, onde ficou se combatendo, querendo, mas não conseguindo. Impotente, caiu em lágrimas, dizendo: “E tu, Senhor, até quando?” Eis que da casa vizinha uma voz de criança surgiu cantando repetidas vezes: “Toma e lê, toma e lê”. Agostinho tentou se lembrar da cantiga, mas não parecia tê-la ouvido antes. De repente, uma certeza se iluminou por dentro e ele voltou até onde estava seu amigo Alípio, pegando o livro das cartas de São Paulo e abriu a esmo, lendo a primeira passagem que seus olhos avistaram: “Não caminheis em glutonarias e embriaguez, não nos prazeres impuros do leito e em leviandades, não em contendas e rixas, mas revesti-vos de Nosso Senhor Jesus Cristo, e não cuideis de satisfazer os desejos da carne”. Contando a Alípio, este quis ler a passagem, mas foi além de Agostinho, lendo para ele a continuação: “Recebei ao fraco na fé”. Não era preciso mais nada, a luta havia acabado, Agostinho estava convertido.

Falava eu daqueles momentos. Nada mais são do que ocasiões de conversão. Podemos recuar, como ele recuou por 12 anos, e viver desses momentos Gonzaguinha. Podemos resistir até o fim, aliás, mas restará o último desses momentos, o da morte, como foi para Ivan Ilitch, o famoso personagem de Tolstoi. Ainda assim será possível aceitar, como aqueles companheiros de Ponticiano que perceberam no mesmo instante que “se eu quiser ser amigo de Deus, posso sê-lo agora mesmo”. Amém.

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