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 | Albari Rosa/Gazeta do Povo
| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

Nas suas últimas colunas, José Carlos Fernandes, dos melhores textos desta Gazeta do Povo, falou das memórias do Presídio do Ahú, em Curitiba – que em breve será demolido. Foi inevitável não lembrar das minhas por lá. Não, não fui preso, quase isso: fui estagiário no departamento jurídico local, em meados dos anos 90, quando Rafael Greca estava no seu primeiro mandato, salvo engano meu.

Eu, piá de prédio em tudo, tinha medo, óbvio. Anos antes, houvera uma rebelião, incendiaram parte do presídio. Não havia dia de trabalho que não temesse fosse acontecer algo assim comigo por lá. Mas o ambiente era tranquilo, típica repartição pública, sem muito contato com a área interna do presídio. Só uma vez por semana, algo assim, íamos para lá atender os presos, mesmo que esses não houvessem solicitado nada. O atendimento era feito por buracos pequenos existentes nas paredes, com grades. Tal como bilheteria de estádio de futebol de antigamente, sabe como? Mal cabia o rosto do preso e a maioria nos destratava, culpava pelo descaso. Mas alguns adoravam conversar, eram até amigos dos advogados mais antigos.

Reconheço que aprendi bastante, ainda que não sobre Direito, no pouco tempo que estagiei no Presídio do Ahú

Aliás, havia uma advogada que se consultava com um dos presos, acho que era um pastor ou se tornou um lá dentro. Ela tinha problemas na família, contou que fez o que ele pedira e que durante uma oração vomitou uma bola de pêlos. Ele disse que era bom sinal, tudo seria resolvido em pouco tempo. Não sei se resolveu mesmo, saí do estágio pouco depois. Outro advogado só parecia saber de uma coisa: ninguém ia preso por dívida. Dizia com muita convicção. Tudo o mais que lhe era perguntado pelos presos recebia uma única resposta: “preciso estudar melhor”.

Certa vez me mandaram pegar a assinatura de um dos presos que trabalhava na cozinha. Achei, na minha piazice de prédio, que iria escoltado por algum agente, mas não. As pesadas portas de ferro iam se abrindo e ninguém me acompanhava, só me diziam por onde eu tinha de ir. Vi-me, de repente, sozinho na área interna que separava os prédios contendo as celas e a sede administrativa, onde eu trabalhava. Alguns presos, acho que por bom comportamento, caminhavam sossegados por ali. Eu evitava olhar, por dentro paralisado, tentando não pensar no absurdo de me mandarem sem apoio do grupo Tigre, esquadrão antibombas e artilharia antiaérea.

Encontrei o assinador. Notando minha tranquilidade budista, sentiu-se ofendido, perguntando: “Tem horror a bandido, é?” Adivinha o que respondi? Isso mesmo, disse: “Sim, senhor”. Culpa do nervosismo, claro. Não estivesse tão apavorado, conseguiria dizer o óbvio “não, imagina!”, que, creio, qualquer um diria nessa hora. Ainda assim, como leem, sobrevivi. Na verdade, o sujeito deixou de se sentir ofendido quando eu disse isso, abriu um sorriso e falou: “Ao menos, é sincero”. Desconfio não se fazem mais presos por bom comportamento como antes. Fosse hoje, provavelmente ele me processaria por dano moral causado à sua condição de oprimido. Para minha sorte, naquela época o politicamente correto não estava tão na moda, apenas engatinhava, então sinceridade, ainda que sem querer, valia alguma coisa.

Enfim, o presídio será demolido e os anos 90 não voltam mais, salvo o Greca. Reconheço que aprendi bastante, ainda que não sobre Direito, no pouco tempo que estagiei lá. Como passo com certa frequência pela área, sinto não poderei mais contar a meus filhos e futuros netos que ali, bem ali, eu quase morri. OK, o piá de prédio ainda vive em mim, pode rir.

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