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| Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF

Celso Karsburg é juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 4.ª Região, correspondente ao Rio Grande do Sul. Carlos Roberto Oliveira Paula é juiz da comarca da Grande Ilha de São Luís, no Maranhão. Nenhum deles é exatamente uma celebridade, nem tem sob sua responsabilidade alguns dos maiores escândalos de corrupção da história do país. Mas também eles precisam ser conhecidos e aplaudidos pelo Brasil, pois abriram mão, livre e espontaneamente, do auxílio-moradia que desde o fim de 2014 é concedido indiscriminadamente a todos os magistrados do país, graças a uma liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Fux.

E mais: não só eles recusaram o benefício, como ainda vieram a público oferecer suas razões, enfrentando a reação corporativista dos pares – em entrevista recente à rádio CBN, Karsburg explicou como foi “isolado” e criticado pelos colegas em um evento da magistratura realizado poucos dias depois da publicação de um artigo de sua autoria em um jornal local, ainda em 2014, explicando por que recusava o auxílio-moradia. Os motivos pelos quais Oliveira – que falou à Gazeta do Povo dias atrás – e Karsburg recusaram o auxílio nos mostram tudo o que há de errado com a maneira como essa benesse vem sendo concedida.

À Gazeta, Oliveira Paula começou dizendo que a Constituição é clara: em seu artigo 39, parágrafo 4.º, está determinado que “o membro de Poder, o detentor de mandato eletivo, os ministros de Estado e os secretários estaduais e municipais serão remunerados exclusivamente por subsídio fixado em parcela única, vedado o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória, obedecido, em qualquer caso, o disposto no artigo 37, X e XI.” Ou seja, penduricalhos como auxílios são expressamente proibidos – os incisos mencionados se referem à maneira como a remuneração é reajustada (37, X) e à proibição de que esses agentes públicos recebem acima do teto constitucional (37, XI).

Que os bons exemplos sirvam para que o Judiciário não seja visto como castelo onde se entrincheiram privilegiados

A leitura atenta da Constituição serve também para derrubar o argumento, citado por Karsburg em entrevista recente ao portal Sul21, de que o auxílio-moradia deve ser concedido por estar previsto na Lei Orgânica da Magistratura. Apesar de ser anterior à Constituição, a Loman obviamente submete-se a ela. E é triste ter de lembrar o óbvio, ainda mais a uma classe cuja razão de ser é garantir a aplicação da lei: onde há conflito, prevalece a Carta Magna.

Mas também os defensores do auxílio-moradia invocam a Constituição em seu favor, citando o parágrafo 11 do mesmo artigo 37: “Não serão computadas, para efeito dos limites remuneratórios de que trata o inciso XI do caput deste artigo, as parcelas de caráter indenizatório previstas em lei”. Ora, indenização é o ressarcimento por uma despesa ou perda forçada e involuntária. E o auxílio-moradia estaria nesta categoria, argumentam os defensores do pagamento. De fato, estaria se um magistrado, transferido para um local onde não tem residência, recebesse de volta o mesmo montante que precisou gastar com hospedagem ou aluguel, mediante apresentação de comprovante de despesas.

O auxílio-moradia, entretanto, não tem sido pago desta forma, e sim em um valor fixo (hoje, cerca de R$ 4,3 mil) concedido indiscriminadamente a todos os juízes, tenham ou não residência na cidade onde exercem a magistratura. Isso não poderia estar mais distante de uma indenização, ainda que haja jurisprudência que os juízes possam invocar em seu favor para dar-lhe essa qualificação. Ele tem todas as características de verba remuneratória; a realidade não permite outro entendimento.

Leia também: Os magistrados e o corporativismo (editorial de 21 de janeiro de 2018)

Leia também: Seguir exemplos ou dar exemplos? (editorial de 9 de julho de 2014)

Karsburg é especialmente crítico aos que trazem à tona a questão salarial para justificar o recebimento do auxílio-moradia, uma tentativa de misturar coisas que não deveriam estar juntas, por mais que as próprias associações de juízes admitam sem problema que o auxílio serve como uma reposição salarial por vias tortas. Se os juízes querem salários melhores, o meio ordinário para tal é a negociação com os demais poderes para que reajustes sejam concedidos e contemplados nos orçamentos da União e estaduais, e não a violação da Constituição em interesse próprio. No início da década passada, disse Karsburg ao Sul 21, “o discurso era: não queremos penduricalhos, queremos subsídio. Agora, quando o subsídio não é reajustado, voltaram com os penduricalhos como maneira de burlar a Constituição”, afirma o magistrado.

Oliveira Paula ainda citou um fator decisivo para sua decisão: o apelo da família, que o ajudou a perceber a imoralidade do auxílio-moradia. “Meus filhos diziam sempre ‘pai, tem gente que não tem um papelão para entrar debaixo, a gente tem casa e recebe’”, conta o juiz maranhense. Que sejam tão poucos juízes a perceber esta situação é sintoma de um amortecimento geral das consciências, ainda que de pessoas honestas, íntegras, mas que “estão perdendo uma ótima oportunidade de entrar em sintonia com a sociedade”, nas palavras de Karsburg.

“Daqui a 10 ou 15 anos, essa história do auxílio-moradia vai virar uma das páginas manchadas do Judiciário brasileiro”, prevê o juiz gaúcho. Só o surgimento de mais juízes como Karsburg e Oliveira Paula e a atuação firme do STF – cuja presidente, ministra Cármen Lúcia, já avisou a entidades representantes da magistratura que o tema será analisado pelo plenário da corte em março – poderão impedir que a previsão se torne realidade. Que seus bons exemplos sirvam para que o Judiciário volte a ser reconhecido como bastião no combate à corrupção, e não como castelo onde se entrincheiram privilegiados.

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