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Experimente cruzar uma rua – a Nilo Peçanha, no Bom Retiro, por exemplo – e contabilizar as pichações. É um espanto. Se a via for no Centro da cidade, o exercício pede para ser o contrário: deve-se contar o que ainda não está batizado pelos sprays. Sem falar nas surpresas a cada vez que se olha para o alto. Os pichadores poderiam figurar no best seller bizarro de Erich von Däniken – Eram os deuses astronautas? Por força de quais milagres conseguem chegar tão alto, debaixo de tamanho perigo? A engenharia desses homens-aranha – ainda que desagradável – é notável. Provoca medo – e precisamos falar sobre isso.

Depredação e a pichação se tornaram uma discussão difícil de tragar, posto que debaixo de complacência. Defende-se o indefensável. Mesmo o mais arrojado dos pesquisadores – alguém que tenha estagiado em Lagos, na Nigéria, e babado comas reflexões do arquiteto e urbanista holandês Rem Koolhaas sobre aquela cidade mergulhada na mais alta taxa de informalidade do mundo – consegue sustentar o “pixo” como cultura.

O programa Tolerância Zero tem o seu valor inegável, mas incorre em todos os riscos das ações policialescas

Tal prática não nasce de um grupo organizado, não tem uma pauta, é fragmentada em territórios, mas não forma tecidos... Em resumo, é mais um sintoma da falência da cidade moderna do que uma possibilidade de novos usos da urbe. Quem teve a sorte ou o azar de vê-los em ação sabe. Imagine uma estação-tubo nova. De repente, os vândalos – sejam simpatizantes da pichação ou não – aparecem, vindos de várias ruas, em desaforo à mais treinada das polícias. Em menos de um minuto arruínam toda a estrutura e dispersam tão rápido quando se uniram. Não é performance nem happening – é ação surda.

Não é preciso nenhum manual de sociologia para entender que a cidade não lhes é acolhedora – daí a agressão ao patrimônio e, por tabela, a quem se utiliza dele. A pedra na mão, cicatrizando o vidro da estação com um desenho abstrato pode até ser tocante, mas não há como negar que se trata de um protesto vazio, incapaz de gerar qualquer sorte de pacto social. Tomando emprestada a reflexão do geólogo Renato Eugênio de Lima, secretário municipal de Meio Ambiente, aqui publicada, resta fazer da pichação e da depredação um assunto sobre o qual temos de nos debruçar, nas mais diversas esferas e escalas.

O argumento corrente em alguns setores – de que essas práticas se avizinham da arte urbana e do protesto – não param em pé. O pichador não é um assaltante, diz-se, mas é. Rouba o dinheiro pago na pintura de uma casa, na manutenção de um parque, a exemplo do Parque da Vista Alegre, avariado duas vezes em sete meses desde sua abertura. Ato inofensivo? Não. As “letras” feitas pelas “crews” (trupes) passam uma tremenda sensação de insegurança, capazes de despertar as mais profundas neuroses. E a contar pelo que dizem profissionais de segurança pública, não só dão pistas para assaltantes como, em alguns casos, estão associados a eles.

Um dos clamores mais comuns é de que se aplique aqui os princípios da “tolerância zero”, cujo exemplo mais notável é a Nova York de Rudolph Giuliani, na década de 1990, início dos 2000. Quebrou, pichou, urinou no poste, tem de arrumar. Pode parecer inócuo, uma ação na pequena escala, mas não é o que mostram os estudos. Um exemplo: nas áreas mais favelizadas da cidade, moradores dizem que se sentem mais ameaçados por brigas de vizinhos, som alto e depredações do que pelas bocas de fumo. O perigo mais próximo, palpável e inteligível é o mais ameaçador – e traz efeitos nefastos: quebra de relações de vizinhança, desconfiança, abandono do espaço público. Fosse possível contabilizar esse tipo de prejuízo emocional, seria muito maior do que os R$ 80 mil gastos para manter o Parque Barigui, por exemplo.

O programa Tolerância Zero tem o seu valor inegável, mas incorre em todos os riscos das ações policialescas. Traz resultados, mas não exatamente laços. Melhor que esse tipo de reeducação venha acompanhada de aplicações práticas do conceito de “cuidado”, de “viver junto”, da “hospitalidade”. A regra continua sendo a de que a cidade precisa se consolidar com espaço de troca entre as pessoas mais diversas, para que mereça ter este nome. Complexo? Sim. As cidades estão fraturadas, insuladas, antiurbanas. Boas práticas públicas são aquelas que consertam esses ossos com políticas de vigilância, mas sobretudo com políticas de afeto. Elas existem.

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