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Na primeira metade do século 19, fabricantes de velas, indignados com a concorrência desleal que vinham sofrendo, suplicaram aos parlamentares franceses que ordenassem o fechamento de todas as frestas pelas quais pudesse passar a luz do sol, esse rival que “se beneficia de condições muito superiores às nossas para a produção de luz”. Assim, a demanda por velas cresceria, beneficiando vários ramos da economia nacional. Obviamente, a Petição dos fabricantes de velas não é real; trata-se de uma sátira do economista liberal Frédéric Bastiat para ironizar o esforço para garantir uma reserva de mercado, uma mentalidade que, talvez até inconscientemente, é defendida por muitas pessoas nos dias que correm – inclusive aquelas que acabam prejudicadas por essa prática.

Inovações tecnológicas viram de cabeça para baixo a lógica de consumo

Tão irresistível e abrangente quanto a luz do sol contra a qual se insurgiam os personagens de Bastiat é o avanço tecnológico que está por trás de inovações como o Uber, o WhatsApp e o Netflix. O aplicativo que permite a seus usuários contratar um motorista para levá-lo de um ponto a outro sofre a oposição de taxistas. Um lobby eficiente tem levado câmaras de vereadores Brasil afora a discutir a proibição do Uber, inclusive em Curitiba. Já o WhatsApp entrou na mira das operadoras de telefonia celular por permitir chamadas de voz. “O WhatsApp é um serviço pirata e acho que as operadoras não deveriam fechar contratos com eles”, disse um empresário do setor. O Netflix, junto com outros serviços over the top, como YouTube e Skype, “subtrai empregos do povo brasileiro”, reclamou o ministro Ricardo Berzoini, das Comunicações.

O que as inovações tecnológicas têm em comum é o fato de entrarem de sola em um mercado altamente regulamentado, virando de cabeça para baixo a lógica de consumo. Como não tiveram de participar de concorrência nenhuma e não precisam pagar o pedágio anual ao poder concedente, Uber, WhatsApp e assemelhados são vistos como praticantes de concorrência desleal. É mais que natural que os taxistas se sintam ameaçados pelo Uber. É seu ganha-pão, conquistado com trabalho duro, que está em jogo. Mas é preciso analisar diversos fatores antes de concluir que realmente está havendo concorrência desleal.

Para resolver esta dúvida, é fundamental ler uma decisão do juiz fluminense Bruno Vinícius Bodart, favorável a um motorista do Uber. O magistrado recorda que a Constituição brasileira trata a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica, e por isso só em condições muito especiais o Estado poderia “impedir ou limitar trocas voluntárias entre particulares”. No passado, explica, o poder público era o único ente capaz de atestar a idoneidade de um motorista e a adequação de um veículo ao transporte de pessoas; hoje, não mais: no Uber passageiros avaliam motoristas e vice-versa, e a informação circula com liberdade. Além disso, é importante lembrar que, mesmo com o Uber funcionando legalmente, os taxistas continuariam a contar com diversos benefícios que seus concorrentes não terão: chancela estatal, isenção de impostos na aquisição de veículos, direito a uma vaga gratuita de estacionamento nos pontos, caracterização única que lhes permite serem facilmente identificados por clientes de oportunidade, uso de faixas exclusivas em algumas cidades.

No caso do WhatsApp é ainda mais difícil defender a tese da concorrência desleal. Afinal, os usuários, para terem acesso ao aplicativo, precisam justamente contratar pacotes de dados que só podem ser vendidos pelas operadoras de telefonia celular. Considerar as chamadas de voz pelo aplicativo um “produto pirata” só porque o cliente não está mais pagando as taxas dos telefonemas comuns é tão anacrônico quanto alegar que o próprio WhatsApp e qualquer outro aplicativo de mensagens de texto está roubando das operadoras um lucro oriundo dos SMS. Em outros países, as empresas de telefonia já perceberam essa realidade e oferecem pacotes que incluem chamadas e SMS ilimitados a preços fixos por período de tempo.

Os fabricantes de velas de Bastiat apelam aos parlamentares com um argumento inquietantemente real: “Sempre que o interesse deste [do consumidor] se viu em confrontação com o do produtor, sacrificastes sempre o próprio consumidor – e assim procedestes, de maneira sábia, para estimular o trabalho e aumentar o emprego”, elogiam os defensores da reserva de mercado. Diante de um novo concorrente que joga por outras regras, há duas opções para quem já está no mercado: exigir que o Estado engesse o que está livre (um pedido que políticos se mostram sempre dispostos a atender) ou solicitar menos amarras estatais para enfrentar a nova concorrência, uma atitude que, no fim, beneficiará muito mais pessoas, entre fornecedores e consumidores. Do contrário, ao optar por mais e mais regulação, só conseguiremos progredir na eterna busca pelo subdesenvolvimento.

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