Artigo

O dia em que conheci meu bisavô!

André Moreira Rodrigues*
21/01/2021 16:02
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Na casa dos meus pais tinha uma carteira escolar no hall de entrada que era usada para deixar coisas do cotidiano como chaves, documentos e até casacos. Por ter crescido com a carteira naquele lugar, nunca dei muita atenção ao móvel. Um dia, um amigo arquiteto me perguntou da origem daquela curiosa carteira. Eu sabia apenas que ela tinha pertencido a uma escola fundada por meu bisavô em Curitiba.
A carteira escolar<br>da Escola Republicana com o símbolo da escola, o Barrete Frígio.
A carteira escolar<br>da Escola Republicana com o símbolo da escola, o Barrete Frígio.
Não conheci meu bisavô, que faleceu pouco mais de uma década antes de eu nascer. Mas escutei muitas histórias incríveis sobre ele. Algumas delas pareciam distorcidas pelo “telefone sem fio” entre gerações. Veio então a pandemia! Nada melhor do que um pouco de ócio criativo da quarentena temperado com curiosidade para iniciar um novo projeto.
Estava decidido: era a hora de conhecer meu bisavô! As histórias familiares deram o início e norte. Conversas com parentes viraram notas no papel que por sua vez deram lugar à pesquisa em livros, bibliotecas, internet e até no Museu Paranaense. Depois de muito antialérgico por remexer em papel antigo, muitas das histórias começaram a ser postas a limpo.
Fernando Augusto Moreira veio com sua esposa Rita Estrella Moreira para Curitiba no ano de 1894. Ele mineiro e ela carioca, vieram num dos anos mais conturbados da história de Curitiba e do Paraná. Era a época de Rui Barbosa, Machado de Assis, Prudente de Moraes, Vicente Machado e tantos outros que forjaram nosso país no alvorecer da República. A Revolução Federalista em seu auge estava no Paraná naquele ano. Lutas fratricidas entre Maragatos e Pica-Paus ceifavam vidas. A guerra com todas suas perversidades trouxe morte, depredação, estupros e fuzilamentos como o do Barão do Serro Azul.
Por outro lado, Curitiba começava a aproveitar a conexão com o mundo através da estrada de ferro dos irmãos Rebouças que transpôs a difícil Serra do Mar. A cidade crescia a passos largos com a indústria da erva mate, aparecimento do telefone e várias outras modernidades.
Fernando Augusto<br>Moreira chegou em<br>Curitiba com sua<br>esposa Rita Estrella Moreira no ano de 1894.
Fernando Augusto<br>Moreira chegou em<br>Curitiba com sua<br>esposa Rita Estrella Moreira no ano de 1894.
Fernando veio a Curitiba para ajudar na reformulação do Jornal A República. Hábil tipógrafo, em pouco tempo, conseguiu não apenas comprar o jornal “A República” como também fundou o jornal “Diário do Paraná”. A tipografia dele ficava num palacete na Rua XV de Novembro no centro de Curitiba e era frequentada pela elite republicana. A família Moreira vivia nos fundos da tipografia.
Três anos depois da chegada em Curitiba, o palacete pegou fogo. As chamas consumiram tudo incluindo a residência de Fernando e Rita, sua fonte de sustento. O fogo ceifou a vida de dois filhos do casal Moreira. Desistir não foi uma opção. Para se reerguer, o casal foi viver numa casa de chácara emprestada por um amigo. O sustento vinha da confecção de sacos de papel para o comércio e de barricas para erva mate.
A tragédia afastou Fernando definitivamente dos jornais. O amplo conhecimento da língua portuguesa conquistado pela edição de tantos jornais levou o casal a fundar A Escola Republicana em 1904. Fernando e Rita, além de proprietários e diretores, também lecionavam. Rita administrava a Escola sem abrir mão de suas obrigações como dona do lar. Fernando parecia estar à frente de seu tempo no ensino e o destino o fez professor. Ele desafiava o sistema com novas ideias e métodos de ensino. Fernando era o professor que ensinava com sublime sacerdócio cuidando de seus alunos como filhos.
Numa época de grande evasão escolar e falta de disciplina de alunos, o castigo físico era comum e quase protocolar em várias escolas. Todavia, o manual da Escola Republicana trazia: “Não serão aplicados castigos physicos”. Ao invés de castigos, Fernando conseguia a disciplina e ordem através de atividades como as do Batalhão Infantil criado por ele. As crianças e jovens aprendiam ordem unida e se apresentavam em público. O treinamento gerava disciplina, respeito e um senso apurado de equipe e de pertencimento.
A Escola Republicana, na  esquina da Rua<br>Marechal Floriano com a Rua Pedro Ivo, foi<br>fundada por Fernando e Rita no ano de 1904.
A Escola Republicana, na esquina da Rua<br>Marechal Floriano com a Rua Pedro Ivo, foi<br>fundada por Fernando e Rita no ano de 1904.
A ideia deu tão certo que acabou sendo copiada por muitas outras escolas. Aqueles que não estavam no Batalhão eram convidados a participar dos Exercícios Suecos, aulas de música e várias outras atividades que faziam da Escola um ambiente feliz, produtivo com respeito e disciplina. O resultado não podia ser outro – os alunos da Escola Republicana passavam na integralidade nos exames escolares feitos pelo inspetor. O prestígio da Escola crescia e com isso os alunos da Escola Republicana foram isentados de prestar exames de admissão para o Ginásio Paranaense ou Escola Normal.
O sacerdócio de Fernando o levava a usar seus recursos para ajudar quem precisasse, fosse dar acesso gratuito à sua escola ou até ajudar famílias em necessidade impedindo a evasão escolar. “... Mesmo na miséria remediada em que sempre viveu, nunca deixou de estender a mão aos alunos pobres. Sempre encontrava meios de dividir o pouco que possuía”, disse Valfrido Piloto.
Com a Primeira Grande Guerra, as dificuldades financeiras da Escola Republicana se agravaram e levaram o casal a vendê-la. Nos 14 anos de funcionamento passaram pelos bancos mais de 4.150 jovens apenas no ensino primário, além de uma grande quantidade de alunos não contabilizados no curso secundário.
Esse foi só o começo da jornada de Fernando Moreira, um dos maiores mestres educadores do Paraná, precursor da formação da Universidade Federal do Paraná e do Instituto Federal do Paraná. Mas isso é assunto para uma outra hora.
*Texto baseado na obra em produção “O Educador”, de autoria de André Moreira Rodrigues.
*ANDRÉ M. RODRIGUES, é cirurgião dentista, palestrante e autor de artigos científicos em áreas como automobilismo, navegação e comportamento humano.