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Roberto*, na república do Alto Boqueirão: “Toda crise também é uma oportunidade” | Albari Rosa/Gazeta do Povo
Roberto*, na república do Alto Boqueirão: “Toda crise também é uma oportunidade”| Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo

É uma casa comum: tem uma sala ampla conjugada com a copa, cozinha, banheiro, quintal e cinco quartos com duas camas em cada. Mas o imóvel localizado no Alto Boqueirão, em Curitiba, tem uma particularidade: serve de lar a nove homens que eram moradores de rua. 

Mantida pela Fundação de Ação Social (FAS), a residência faz parte da nova política voltada à população em condição de vulnerabilidade da capital e definida após reuniões com o Ministério Público do Paraná (MP-PR).

Inaugurado em 23 de novembro, o espaço é chamado, informalmente, de “república dos moradores de rua”. Os seus atuais nove residentes – a casa tem capacidade para dez – foram escolhidos a dedo pela própria FAS, a partir de três pré-requisitos: que eles estivessem em abstinência, que tivessem alguma fonte de renda – formal ou informal –, e que tivessem em condições de reconquistar a autonomia.

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Todos os ocupantes da república são homens, que, antes, usavam outros equipamentos da FAS. O perfil profissional, entretanto, é diversificado: há desde metalúrgico e operários da construção civil até atendente de telemarketing e professor. O plano é que eles permaneçam na casa por até seis meses. O prazo de permanência é prorrogável, mas a equipe da FAS espera que até lá eles já tenham retomado a própria vida.

Casa em que funciona a república do Alto BoqueirãoAlbari Rosa/Gazeta do Povo

“A ideia é de que este seja um espaço para alavancar a vida deles, para que eles possam se reorganizar e se reerguer. O planejamento é abrir outras unidades no ano que vem”, afirma a diretora da FAS Maria Sirlei. “A população de rua tem níveis diferentes de vida e de necessidades. Este é o local que é a porta de saída mesmo”, acrescenta a assistente social Ariadne Poplad Pereira Alcântara.

Crise e oportunidade

“Como dizem os chineses, toda crise também é uma oportunidade”, conta o professor Roberto* [nome fictício], um dos moradores da república e que estava em situação de rua desde agosto deste ano. Católico praticante, ele preferiu sair de casa depois de episódios recorrentes do que chama de perseguição religiosa, por parte de familiares evangélicos. Roberto* passou um mês no Albergue Boa Esperança (que foi fechado em setembro) e três meses no condomínio social (que também foi extinto), até ser escolhido para ser um dos ocupantes da república.

Mesmo formado, Roberto* concluiu cursos de filosofia ofertados gratuitamente pela USP na internet e se aprofundou em seu ofício de professor. Hoje, dá aulas uma vez por semana. Com a retaguarda da república, ele planeja aumentar o número de aulas no ano que vem. Vai, inclusive, se inscrever no processo seletivo do governo do estado para recrutar professores temporários. “Eu quero poder sair [da república] antes do prazo dos seis meses. Se tudo der certo, em fevereiro eu já devo conseguir caminhar sozinho.”

Roberto* quer conquistar condições de sair da república dentro de dois mesesAlbari Rosa/Gazeta do Povo

Os moradores, contudo, ainda sofrem com o preconceito. Apesar de nunca ter usado álcool ou drogas, Roberto* teme reações de quem venha a descobrir que ele já teve que viver nas ruas. Por isso, pediu para que seu nome real não constasse na reportagem. 

Outros residentes da república sequer aceitaram contar suas histórias de vida. “Infelizmente, isso [o preconceito] acontece muito. Eu dou aulas para crianças. Eu posso perder esses alunos se os pais descobrirem que o professor delas morou na rua, com toda a ideia que se tem do que acontece na rua”, justificou Roberto*.

Rotina

A república funciona dentro do conceito de autogestão. Ou seja, as tarefas diárias e os eventuais conflitos devem ser resolvidos pelos próprios moradores. A FAS não mantém nenhum funcionários em tempo integral na casa, mas a equipe de assistência social faz visitas constantes ao local, para monitorar o quadro de cada um dos residentes. 

A divisão dos afazeres foi proposta pelos próprios moradores. Um deles, por exemplo, que já trabalhou como cozinheiro, cuida do cardápio de segunda a sexta-feira. O banheiro funciona no esquema “sujou, limpou imediatamente”. Por ora, cada um lava as próprias roupas à mão (uma máquina de lavar foi comprada pela FAS, mas ainda não chegou). Apesar das atribuições de cada um, eventuais conflitos são inevitáveis.

Espaços comuns: copa e sala da repúblicaAlbari Rosa/Gazeta do Povo

“Tem que ser uma biga puxada por dois cavalos: o respeito e a responsabilidade. Ocorre que algumas pessoas têm um discurso de razão, mas não agem de acordo com o que dizem. Aí ficam uns dois ou três fazendo [as tarefas]”, disse Roberto*.

Além disso, os residentes têm o compromisso de se manterem em abstinência. No entanto, sem supervisão constante, já aconteceram abusos. “Existem ex-usuários entre os moradores e, às vezes, a pessoa pisa na jaca. Já aconteceu. No outro dia, ficam naquela ressaca moral”, apontou Roberto*. 

Todos os quartos são duplos, divididos por dois moradoresAlbari Rosa/Gazeta do Povo

Reestruturação na política

Além da casa no Alto Boqueirão, a FAS inaugurou, no dia 30 de novembro, outra república para moradores de rua, no Boqueirão. Este espaço tem capacidade para 15 pessoas, mas está, atualmente, com 13 ocupantes.

Ambas as repúblicas fazem parte de uma reestruturação na política de assistência à população de rua, definida após reuniões com o MP-PR. Apesar de a iniciativa ser elogiada pelas autoridades, o número de vagas ofertadas ainda é pequeno. Curitiba tem mais de 1,7 mil moradores de rua e menos de 700 vagas de acolhimento.

O ano de 2017 chega ao fim marcado por turbulências na assistência à população de rua, que levaram o Ministério Público e a Defensoria Pública a expedirem 21 recomendações conjuntas à prefeitura, entre as quais, que a administração se abstivesse de adotar práticas higienistas e que não fossem efetuadas “remoções compulsórias” – conforme denúncias que vieram à tona ao longo do ano.

Além disso, logo na primeira semana de seu mandato, o prefeito Rafael Greca (PMN) fechou o guarda-volumes da Praça Osório. Em setembro, o Albergue Boa Esperança, que ficava no Centro e que disponibilizava 247 vagas para pernoite, também teve as portas fechadas definitivamente.

O condomínio social também foi extinto pela atual gestão. O equipamento se assemelhava a uma república, mas abrigava um número maior de pessoas – tinha capacidade para 100 moradores – e funcionava em regime de co-gestão: ou seja, educadores da FAS permaneciam no espaço em tempo integral. Outros programas da Fundação foram direcionados ao prédio, de acordo com a reestruturação proposta pela atual gestão.

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