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A declaração da abolição – uma homenagem a Martin Luther King Jr.
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“Não há nada tão forte quanto uma idéia cuja hora é chegada.” (Victor Hugo)

A escravidão é uma prática nefasta que, infelizmente, acompanhou a humanidade por longos séculos. Não fazia distinção por raça ou cor, e praticamente todos os povos conquistados viravam escravos dos conquistadores. O próprio termo slave vem de eslavos, que foram vítimas da escravidão por séculos. Com o Iluminismo, as idéias pela liberdade individual foram ganhando mais força, e a noção de “direito natural” proposta por Locke plantaria as sementes da abolição da escravatura. Tais idéias tiveram ampla influência nos “pais fundadores” dos Estados Unidos. A Declaração de Independência americana foi sem dúvida um importante marco na luta contra a escravidão. Apesar do fato lamentável de que alguns dos “pais fundadores” tinham escravos, como o próprio Thomas Jefferson, é inegável que suas idéias foram cruciais para o combate à escravidão.

A jornalista Stephanie Schwartz Driver, autora de um livro sobre a Declaração, afirma: “Desde a década de 1820, a linguagem da Declaração de Independência e as promessas nela contidas foram discutidas com grande efeito retórico pelo movimento abolicionista. […] Os abolicionistas baseavam sua causa em princípios morais, retomando a idéia da lei natural advogada por Jefferson na Declaração de Independência e utilizando esse documento para defender seus argumentos”. De fato, os principais abolicionistas compreenderam que na própria Declaração já havia todo o argumento necessário para abolir a escravidão.

Em 1823, o importante abolicionista inglês David Walker fez o seguinte discurso inflamado: “Vejam suas declarações, americanos!!! Vocês compreendem sua linguagem? Escutem o que foi declarado ao mundo no dia 4 de julho de 1776 – ‘Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas – que TODOS OS HOMENS SÃO CRIADOS IGUAIS!! Que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade’!! Comparem sua própria linguagem acima, extraída da Declaração de Independência, com as crueldades e os assassinatos cometidos por seus pais impiedosos e por vocês próprios contra nossos pais e contra nós – homens que nunca lhes fizemos, nem a seus pais, a mínima provocação!!!!!”.

O começo da petição da abolição da escravatura, assinada por 19 escravos em New Hampshire, também deixa evidente a influência do texto da Declaração: “A petição dos abaixo-assinados, nativos da África, agora detidos à força em regime de escravidão no estado mencionado, muito humildemente atesta: Que o Deus da natureza lhes deu vida e liberdade, nos termos da mais perfeita igualdade com outros homens; Que a liberdade é um direito inerente à espécie humana, a qual não deve ser abdicada, senão por consentimento, para o bem da vida social; Que a tirania pública e privada e a escravatura são igualmente detestáveis às mentes conscientes da igual dignidade da natureza humana”. Eram as idéias dos “pais fundadores” sendo usadas uma vez mais para a luta pela liberdade.

William Lloyd Garrison, abolicionista e fundador do The Liberator, principal jornal abolicionista, fez alusão direta ao texto da Declaração também: “Acredito na parte da Declaração de Independência em que se estabelece, como verdades evidentes por si mesmas, ‘que todos os homens são criados iguais; que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis; que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade’. Logo, sou um abolicionista”. Garrison voltou às idéias dos “pais fundadores” em 1833: “Ao som do chamado das trombetas, três milhões de pessoas levantaram-se do sono da morte e se precipitaram para a luta sangrenta; acreditando ser mais glorioso morrer instantaneamente como homens livres do que desejável viver uma hora como escravos. Eles eram em pequeno número – pobres em recursos; mas a honesta convicção de que a Verdade, a Justiça e o Direito estavam do seu lado os tornou invencíveis”.

O ex-presidente John Quincy Adams atuou como defensor dos escravos perante a Suprema Corte no famoso caso Amistad, em 1841. Os escravos tomaram o controle do navio enquanto estavam acorrentados, matando a tripulação e poupando apenas dois navegadores, mas foram capturados novamente em solo americano. Sua defesa foi toda calcada na Declaração: “No momento em que se chega à Declaração de Independência e ao fato de que todo homem tem direito à vida e à liberdade, um direito inalienável, este caso está decidido. Não peço nada mais em nome desses homens desafortunados senão o que se encontra nessa Declaração”. A Suprema Corte confirmou a decisão de libertar o grupo de escravos.

Abraham Lincoln reconheceu na Declaração de Independência os pilares contra a escravidão: “Tenho convicção de que todos os registros do mundo, desde a data da Declaração de Independência até três anos atrás, poderiam ser investigados em vão à procura de uma única afirmação, de um único homem, de que o negro não foi incluído na Declaração de Independência”. Após ser eleito presidente em 1861, Lincoln foi mais direto ainda: “Nunca tive um sentimento político que não nascesse dos sentimentos incorporados à Declaração de Independência”.

Por falar em Lincoln, Martin Luther King Jr., em seu conhecido discurso no Lincoln Memorial em 1963, sobre o sonho de viver numa nação onde os indivíduos fossem julgados pelo caráter, e não pela cor, disse: “Quando os arquitetos de nossa república escreveram as magníficas palavras da Constituição e da Declaração da Independência, eles estavam assinando uma nota promissória, da qual todos os americanos seriam beneficiários. Essa promissória dizia que todos os homens, sim, o homem branco e o homem negro, teriam garantidos os direitos inalienáveis de ‘Vida, Liberdade e busca da Felicidade’. […] Eu tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e viverá para sempre o verdadeiro significado do credo: ‘Consideramos estas verdades evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais'”.

No Brasil, o combate à escravidão contou com um forte aliado na figura de José Bonifácio, o Patriarca da Independência. Seus argumentos, em discurso pronunciado na Assembléia-Geral em 1824, eram claramente influenciados pela visão liberal dos “pais fundadores” americanos. O pilar de seu discurso era moral. Contra os defensores da escravidão com base no direito de propriedade, eis o que Bonifácio argumentou: “Não é, pois, o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade”. E acrescentou ainda: “Não basta responder que os compramos com o nosso dinheiro; como se o dinheiro pudesse comprar homens! – como se a escravidão perpétua não fosse um crime contra o direito natural”. Em resumo, a escravidão é injusta, pois ignora que todos os homens merecem tratamento igual perante as leis, e que nascem livres.

Como fica claro acima, a escravidão, uma prática comum até poucas décadas atrás, foi finalmente abolida no Ocidente, graças às idéias iluministas com base no direito natural à liberdade. A Declaração de Independência foi, talvez, a mais importante arma contra a escravidão. Nossa liberdade não deriva do consentimento de uma autoridade qualquer, como o governo ou mesmo a maioria. Quem discorda disso, precisa aceitar como legítima a escravidão se a maioria de um povo a desejar. O principal argumento contra a escravidão, mesmo nos casos onde a maioria de um povo vota por ela, pode ser encontrado nas magníficas palavras da Declaração de Independência americana. Ela pode até mesmo ser chamada de Declaração da Abolição!

Rodrigo Constantino

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