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A sociedade aberta segundo Karl Popper
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“O futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica.” (Karl Popper)

O filósofo Bertrand Russell definiu a obra-prima de Sir Karl Popper, A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, como “um trabalho cuja importância é de primeira linha e que deve ser largamente lido por sua crítica de mestre aos inimigos da democracia, antigos e modernos”. O livro faz um ataque contundente a Platão, assim como uma análise mortal de Hegel e Marx. Creio que um dos grandes valores do livro é levar o debate político para a divisão entre coletivistas e individualistas, ao invés de esquerda e direita. Popper combate duramente os autoritários coletivistas, independente do espectro político. Seu foco é a transição da sociedade tribal, ou sociedade fechada, para uma sociedade aberta. Na primeira, há uma submissão às forças mágicas, enquanto a última “põe em liberdade as faculdades críticas do homem”.

Um dos maiores inimigos da sociedade aberta é o historicismo. Para Popper, “o futuro depende de nós mesmos, e nós não dependemos de qualquer necessidade histórica”. Os historicistas, ao contrário, acreditam ter descoberto leis históricas que permitem profecias sobre o curso dos acontecimentos históricos. Os homens não seriam donos do próprio destino, segundo esses pensadores. Esta postura alivia os homens do ônus de suas responsabilidades, pois não importa o que façam, o futuro já está definido. Como exemplo está a doutrina do “povo escolhido”, ou o determinismo econômico de Marx. A doutrina historicista costuma ser profética, conduzindo à rejeição da aplicabilidade da ciência e da razão aos problemas da vida social. Em última instância, é a doutrina do poder, da dominação e da submissão.

Como sinônimo desse modelo, temos o tribalismo, ou seja, “a ênfase sobre a suprema importância da tribo, sem a qual o indivíduo nada é em absoluto”. O coletivismo, seja ele de classe, raça, credo ou nação, fica acima do indivíduo, que nada significa. Esse tribalismo tem como traço marcante uma rigidez social, sendo a vida determinada por tabus sociais e religiosos. Cada um tem seu lugar definido, um lugar “natural”, que lhe foi destinado pelas forças que regem o mundo. A sociedade ideal de Platão, exposta em A República, atesta isso, defendendo a divisão entre castas. Popper diz: “Em combinação com a idéia historicista de um destino inexorável encontramos freqüentemente um elemento de misticismo”. Popper demonstra aberta hostilidade para com o historicismo, convicto de que ele é “fútil, senão pior do que isso”. Com base na tradição tribal coletivista, as instituições não deixam campo à responsabilidade pessoal. Essa sociedade mágica, tribal ou coletivista seria a sociedade fechada, enquanto uma sociedade aberta ou democrática seria aquela “em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais”. Platão, ao ir contra tudo isso segundo a leitura de Popper, foi tachado por este de “partidário do totalitarismo”. *

Para Popper, a transição da sociedade fechada para a aberta “pode ser descrita como uma das mais profundas revoluções por que passou a humanidade”. O comércio seria um dos maiores perigos para a sociedade fechada, forçando sua abertura. Por isso vemos tanta hostilidade ainda hoje, por parte dos coletivistas, em relação ao comércio global. A queda da sociedade fechada gera tensões, criadas pelo esforço que a vida em uma sociedade aberta continuamente exige, através da necessidade de ser racional, de cuidar de nós mesmos e de aceitar responsabilidades. A comunidade tribal é o refúgio dos receosos, o lugar de segurança contra os “inimigos hostis”, o desconhecido. Seria o análogo a uma família para uma criança, que sabe qual papel deve desempenhar, já que lhe é imposto.

Na Guerra do Peloponeso, entre Esparta e Atenas, Popper encontra o berço dessa transição, com os espartanos representando a vida tribal e os atenienses esboçando uma abertura ao indivíduo livre e racional. Entre os princípios da política espartana estavam a proteção contra as influências estrangeiras que pudessem pôr em perigo a rigidez dos tabus tribais, a independência do comércio externo, o anti-universalismo de não se misturar com os inferiores e a dominação dos vizinhos. Em Atenas, ao contrário, vários pensadores já defendiam os pilares básicos da sociedade aberta, com uma nova fé na razão, na liberdade e na fraternidade dos homens. Para Popper, esta é a única possível fé da sociedade aberta. Seus principais inimigos são justamente os misantropos e os detratores da razão humana. Aqueles que sonham com uma unidade, beleza e perfeição, com um coletivismo utópico, demonstram um sintoma do espírito de grupo do tribalismo. “Nunca podemos retornar à alegada inocência e beleza da sociedade fechada”, afirma Popper. O sonho de um céu não pode ser realizado na terra.

Quando começamos a confiar em nossa razão, a usar nossos poderes de crítica, “não poderemos retornar a um estado de submissão implícita à magia tribal”. O paraíso está perdido para aqueles que experimentaram da Árvore do Conhecimento. Uma tentativa de regressar à Idade de Ouro leva à Inquisição, à Polícia Secreta e a um banditismo romantizado. Popper diz: “Não há mais volta possível a um estado harmonioso da natureza; se voltarmos, então deveremos refazer o caminho integral – devemos retornar às bestas”. Para permanecermos humanos, só existe o caminho da sociedade aberta. Popper conclui: “Devemos marchar para o desconhecido, o incerto e o inseguro, utilizando a razão de que pudermos dispor para planejar tanto a segurança como a liberdade”.

 * Platão, em A República, traça o que seria o Estado ideal, ainda que não exeqüível na prática. Há um claro viés coletivista, colocando os indivíduos como nada mais que instrumentos para a felicidade da “República”. Caberia aos sábios determinar as regras, aniquilando as escolhas individuais. Normalmente, o coletivista parte do pressuposto que ele estará sempre do lado legislador, criando as regras e decidindo o rumo da felicidade alheia. Temos passagens bastante autoritárias no livro: “Deixaremos ao cuidado dos magistrados regular o número dos casamentos, de forma que o número dos cidadãos seja sempre, mais ou menos, o mesmo, suprindo os claros abertos pelas guerras, enfermidades e vários acidentes, a fim de que a República nunca se torne nem demasiado grande nem demasiado pequena”. Ou ainda: “Os filhos bem nascidos serão levados ao berço comum e confiados a amas de leite que terão habitações à parte em um bairro da cidade. Quanto às crianças enfermiças e às que sofrerem qualquer deformidade, serão levadas, como convém, a paradeiro desconhecido e secreto”. O ataque contra a liberdade individual não acaba por aí: “As mulheres gerarão filhos desde os vinte até os quarenta anos; os homens logo depois de passado o primeiro fogo de juventude, até os cinqüenta e cinco”. Platão foi muito além, defendendo o fim das propriedades dos guerreiros, e deixando todas as decisões importantes para os poucos sábios. Essa outra passagem deixa claro que a República estaria muito acima, em grau de importância, dos indivíduos: “Assim, em nossa República, quando ocorrer algo de bom ou de mau a um cidadão, todos dirão a um tempo meus negócios vão bem ou meus negócios vão mal”. Tamanho coletivismo iria influenciar a Utopia de Thomas More, assim como Cidade do Sol, de Tommaso Campanella. Tais idéias, quando tentadas na prática, resultaram no infeliz experimento soviético.

Texto presente em “Uma luz na escuridão”, minha coletânea de resenhas de 2008.

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