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Até que ponto a Justiça deve tentar purificar todo o sistema?
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Crianças gostam de histórias maniqueístas, com mocinhos e bandidos bem definidos. Mas adultos sabem que o mundo real é mais complexo, reconhecem as zonas cinzentas que existem, mesmo sem cair num relativismo exacerbado. As séries de televisão têm feito tanto sucesso justamente por trabalhar com personagens complexos, como no caso de “Soprano”, “Breaking Bad” e tantas outras. Virou até tema de livro: homens difíceis, adultos, reais.

Ocorre o mesmo com “Billions”, nova série com Paul Giamatti e Damion Lewis, dois craques que estão perfeitos em seus personagens, e com química total como inimigos mortais. Um é o procurador do Distrito de Nova York, o outro um bilionário da indústria de hedge fund que pratica crimes, como “insider information” e coisa pior.

Entre eles, há a esposa do procurador Chuck Rhodes, que trabalha como psicóloga no fundo do bilionário Bobby Axe. Um dilema e tanto. E essa discussão abaixo, que fecha o último episódio da primeira temporada (atenção: com algum spoiler), é simplesmente imperdível:

Como negar que cada um tem um ponto? A série explora o lado escuro e sombrio do homem da Justiça, seu ciúmes doentio em relação à esposa e ao relacionamento especial que ela tem com o bilionário poderoso, a sombra que seu pai lhe fazia, suas taras e fraquezas individuais. Também mostra que ele parece disposto a extrapolar as regras, a abraçar a máxima de que os “nobres fins” justificam quaisquer meios. Para pegar o criminoso e fazer o “bem-geral”, vale quase tudo, até mesmo ignorar as leis.

Paul Giamatti, que já foi o pai fundador americano mais conservador, John Adams, em série imperdível com esse nome, esculacha na discussão o viés “libertário” do bilionário, mencionando inclusive Ayn Rand. Se cada um partir da premissa de que o sistema é podre, dominado por políticos e burocratas idiotas ou corruptos com suas regras arbitrárias, cairemos na anárquica “terra sem lei”. Já vi “libertário” defendendo que é legítimo reagir contra um policial que tenta aplicar uma lei “injusta”, ou até enaltecendo como herói traficante de droga. Desafiaram o “sistema”.

Seguem a máxima de Thomas Jefferson, o mais libertário dos pais fundadores, de que “se uma lei é injusta, o homem não somente tem o direito de desobedecê-la, ele tem a obrigação de fazê-lo”. Resta saber quem decide, e como. Se estamos falando de regimes totalitários ou ditatoriais, como Cuba, Venezuela ou a Alemanha nazista, parece óbvio que ele está certo: aquele que cumpre a lei é cúmplice de uma tirania injusta. O soldado que mata judeus “apenas cumprindo ordens” é o criminoso na história.

Mas e quando há uma democracia com pesos e contrapesos, relativamente sólida, como a americana? Aí parece razoável adotar o ponto de vista do procurador: os “capitalistas” dispostos a cruzar certas linhas fazem mal ao sistema, ao próprio capitalismo. Não são heróis, mas bandidos que destroem o equilíbrio do sistema.

O capitalismo de livre mercado não combina com esse “capitalismo de compadres”, tão alimentado pela esquerda, ou com empreendedores que burlam as regras básicas do jogo. Alguns libertários podem ver como heróis esses empresários que aceitam cruzar as linhas da lei para se dar bem, mas sem o império das leis nenhum país avança. A equipe do procurador recebe propostas tentadoras para aderir ao sistema carcomido, mas recusa em nome de um ideal. O próprio procurador recusa proposta de quase $10 milhões por ano!

E no caso não é um ideal esquerdista, romântico, anticapitalista, e sim o de preservar o verdadeiro capitalismo, o sonho americano de que o mérito, não os conchavos ou a “malandragem”, deve prevalecer na hora de definir o sucesso. Mesmo que nunca se chegue plenamente lá, é preciso tentar, caminhar nessa direção, fazer sua pequena parte. Em nome do próprio “fair play” capitalista.

No caso brasileiro, ficamos em algum lugar no meio do caminho. Não somos a Venezuela ou Cuba, graças à saída do PT. Mas tampouco somos os Estados Unidos. Temos uma democracia capenga, com poder concentrado demais em Brasília, arbitrário demais, que pode numa canetada fazer ou destruir negócios enormes. O custo da legalidade é muitas vezes proibitivo.

Nesse caso, como fica? Qual lado devemos tomar? São criminosos ou heróis os empreendedores que desafiam esse sistema para avançar, criar riquezas e empregos? Respondendo de forma bem sincera, e para adultos, haverá uma região cinzenta, em minha opinião. Há certas atitudes que, no Brasil, são pela pura sobrevivência do negócio, como talvez pagar suborno a fiscais corruptos que abusam do excesso de regras arbitrárias para achacar o empresário.

Mas há, sem dúvida, outras atitudes que configuram crime escancarado, tentativa de explorar o sistema de forma ativa, tornando-o ainda mais corrupto do que já é. Nesse caso, podemos pensar em todos esses empresários que se uniram ao PT, uma quadrilha disfarçada de partido, para saquear cada centavo dos cofres públicos, de todos nós. É algo bem diferente do empresário que, acuado, paga ao fiscal para não fechar as portas ou manda parte de seu patrimônio para o exterior sem declarar.

Qual o limite que a Justiça deve ir em nome de seu ideal de purificar o sistema? Difícil dizer. Se todas as regras fossem ser seguidas da noite para o dia, o Brasil simplesmente parava. Por isso Stanislaw Ponte Preta teve aquela tirada excelente que virou epígrafe do meu novo livro: “Instauremos a moralidade ou nos locupletemos todos”. Mas confesso ter algum receio das tentativas de purificação milagrosa, de transformar o Brasil numa Suíça antes de passar pela Itália ou Espanha. Queremos sair do inferno ao paraíso sem passar pelo purgatório.

Não, esse texto não é um ataque à Operação Lava-Jato ou ao juiz Sergio Moro, que virou, merecidamente, um herói nacional. O Brasil precisa de heróis desse tipo. Até porque sabemos que a Polícia Federal tem perseguido bandidos, mafiosos, que não combinam com qualquer descrição de empreendedor. Mas esse texto é um papo reto entre adultos sobre até onde o anseio por pureza deve ir na política e no mundo real. Mais do que de heróis individuais, precisamos e melhores instituições.

De minha parte, gostaria de ver muito mais “empresário” e, principalmente, político preso. E confesso que só vou mesmo aplaudir de pé o trabalho da Justiça quando Lula for em cana. Mas também gostaria de ver mudanças estruturais no sistema. Pois, do jeito que ele está hoje, com esse custo quase proibitivo da legalidade e essa imensa quantidade de poder arbitrário concentrado no governo, será simplesmente impossível chegar a um capitalismo mais justo, e os empresários continuarão reféns dos políticos, com os mais “agressivos” (bandidos) se dando bem.

Devemos buscar um modelo com menos intervenção estatal, poucas regras, mais claras e objetivas, um ambiente de livre concorrência. E aí sim, que os homens da Justiça se recusem a fazer muitas concessões aos que, mesmo assim, tentam corromper o sistema e quebrar as regras do jogo. O alvo são os corruptos, sem dúvida. Mas também deve ser o “capitalismo de compadres” e esse sistema podre com muito poder concentrado no estado.

Rodrigo Constantino

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