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De “retaliação” em “retaliação” entre os poderes, quem sabe não chegamos a um governo menor?
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Acabo de publicar o texto de Mauad para o Instituto Liberal sobre a questão das “retaliações” entre os poderes, claramente em colisão, no qual ele termina com tom pessimista, questionando se o Brasil tem jeito. Em que pese o cansaço legítimo com nosso país, pretendo, aqui, oferecer uma visão alternativa mais otimista.

Não vou negar o absurdo de se chamar de “retaliação” uma medida constitucional que simplesmente acaba com privilégios indevidos. Tampouco vou elogiar o fato de que tais mudanças só ocorrem quando há mesmo uma disputa por espaço e poder em meio a uma crise. Mas vou apresentar o outro lado da coisa: quem sabe por esse caminho não possamos chegar a um governo menor?

Se o Legislativo tem cometido claros abusos, e se o Judiciário tem bancado cada vez mais o legislador ativista, então talvez as “retaliações” de ambas as partes terminem por limitar mais seus respectivos poderes, o que seria um ganho do ponto de vista liberal.

Podemos pensar em dois vizinhos violentos e, tantas vezes, criminosos. Quando ambos estão bem unidos é que mora o perigo para nós, não é mesmo? Mas se um começa a confrontar o outro, por mais que isso possa gerar aflição pelo efeito desconhecido e incerto da briga de gigantes, o resultado pode muito bem ser o enfraquecimento mútuo deles, e também um foco maior em atacar as forças um do outro, em vez de pilharem nossa humilde e desprotegida casinha.

Esse princípio se encontra, na verdade, nos textos mais antigos que conhecemos. Usei em Panaceia, meu primeiro livrinho de ficção, com o famoso personagem Otávio de Ramalho. Muitos “olavetes” detestaram o livro antes mesmo da leitura, e mal sabem que o “padre” foi o responsável, em minha história, pela sacada mais genial e pragmática no combate aos monstros da aventura. Eis a passagem:

– E qual exatamente o seu plano para enfrentarmos os monstros marítimos, caso eles existam de fato?

Pantoja pareceu confuso por alguns instantes, nitidamente incomodado com a pergunta. Coube ao padre tomar a iniciativa:

– Se me permitem, gostaria de lhes contar uma curta história. Trata-se da Epopeia de Gilgamesh. É um antigo poema épico da Mesopotâmia, uma das primeiras obras escritas que se tem conhecimento.

– Padre, sinceramente, eu não acho que seja o momento para mais mitologia. Precisamos trabalhar!

– Espere um pouco, Pantoja. Deixe-me terminar que você verá o sentido disso tudo. Às vezes é necessário dar um passo atrás para dar dois à frente.

– Deixe o padre contar a história, Pantoja. Não serão cinco minutos que irão nos prejudicar. E pode ser que ele tenha algum ponto relevante nisso.

Pantoja deu de ombros, claramente contrariado. Padre Otávio prosseguiu:

– Então, Gilgamesh era tido como um deus-herói nos poemas sumérios. Ele era provavelmente um monarca que comandava os cidadãos de Uruk. Acontece que estes estavam incomodados com seu excessivo poder dinástico, e pediram aos deuses que lhes mandassem outro ser tão poderoso quanto Gilgamesh. Enkidu, um selvagem muito forte, foi então criado pelos deuses como equivalente de Gilgamesh, para que o distraísse e evitasse que ele oprimisse seu povo.

– Padre, por favor, qual seu ponto? Confesso que estou ficando impaciente com tanta ladainha…

– Tentarei encurtar a história. A parte que nos interessa é que Gilgamesh e Enkidu foram juntos passar por diversas missões, fora de Uruk. Os deuses ficaram descontentes com aquilo que ambos fizeram juntos, derrotando o monstruoso guardião das Montanhas do Cedro e depois matando o Touro dos Céus. Mas eis o que realmente importa: Uruk prosperou durante esta fase toda em que Gilgamesh e Enkidu disputavam para ver quem tinha mais poder!

– E que diabos isso tem a ver com nossa missão, padre?

– Você não percebe, Pantoja? É genial, padre! Como não pensei nisso antes?

O padre Otávio fez esforço para não demonstrar um largo sorriso de vitória. Se não seria pela fé, então ao menos seria por sua sabedoria histórica dos mitos que ele provaria seu valor no grupo. Edmundo estava empolgado feito uma criança com a revelação que aquela história estampava em sua cara. E ele nem sequer pensara nisso…

– É perfeito, padre! Conhecemos relatos de dois monstros que habitam as profundezas do mar nórdico. Um deles é o famoso Leviatã, uma criatura gigantesca, uma espécie de dragão marinho, pelo que dizem aqueles que juram ter visto a fera. A outra é o Kraken, igualmente assustador. Dizem que seu lombo tem uma milha e meia de comprimento e que seus braços podem abraçar o maior dos navios.

– Continuo sem ver a conexão…

– Pantoja, está evidente! Leviatã e Kraken, dois gigantescos polvos, dois igualmente poderosos dragões do mar. Gigalmesh e Enkidu!

Que os monstros briguem entre si! Que um poderoso resolva “retaliar” mais o outro, de modo a reduzir o poder de cada um deles! Talvez assim o povo brasileiro seja deixado um pouco em paz, enquanto senadores atacam supersalários de juízes, e estes finalmente começam a julgar os processos empoeirados que se acumulam na Justiça.

“A pior ditadura é a do Poder Judiciário: contra ela, não há a quem recorrer”, dizia Rui Barbosa. Não queremos, como liberais, delegar um poder excessivo a poder algum. Montesquieu compreendeu muito bem a importância da divisão dos poderes. E o maior risco é justamente quando todos estão alinhados, camaradas, companheiros, como ocorreu durante os anos trágicos do lulopetismo. Que venham mais e mais “retaliações”, portanto!

Rodrigo Constantino

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