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Deus nos livre de um Estado Católico
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Por Pedro Henrique Alves, publicado pelo Instituto Liberal

Praticamente todos os grandes analistas políticos conservadores e liberal-conservadores do século XX relacionaram a religião cristã, superficialmente tomada como método de atuação política pelos Estados modernos, como as grandes causas das histerias e morticínios do século XX. Todavia, seria ridiculamente parvo se falássemos que foi a própria religião cristã a causa de tais morticínios, gerados — bem se sabe — pelos anseios transloucados e utópicos dos diversos ideólogos que aquele século tomou e erigiu. Não obstante, a religião no lugar errado, por exemplo, na gerência dos instrumentos estatais, geralmente se transforma numa anomalia que finda quase sempre em ditaduras e autoritarismos diversos.

Tais afirmações são dados acessíveis a quaisquer pessoas que nutram um conhecimento básico da história dos séculos XIX e XX. Todavia, há pessoas que querem novamente o advento de Estados religiosos, mais especificamente: Estados Católicos. Esta é a defesa filosófica e teológica que o Sr. Carlos Nougué, um dos maiores tomistas vivos no Brasil, tomou como fronte de argumentação política. Ainda nesse imbróglio, Lucas Berlanza, colega e colunista do Instituto Liberal, se posicionou contrariamente à opinião do tomista num texto recém postado no Instituto Liberal: Nem comunismo, nem Sharia, nem “Estado católico”.

Não demorou quase nada para surgirem os templários da apologética de causas que não conhecem; num estalar de dedos começaram a defender Nougué, numa atitude bonita, compreensível e até louvável entre mestre e aprendiz. No entanto, outras pessas, possessas do espírito de Sharia online, que faria qualquer muçulmano se sentir apequenado, começaram a atacar o colunista liberal em suas postagens no Facebook. Nesse ínterim entre a apologética de Estado católico de Carlos Nougué, o texto de Berlanza e a polêmica posterior, meu texto vem ser uma breve análise da temática, assim como uma crítica polida à tese do Sr. Nogué.

Pensar sem grilhões:

Apesar de assumir minha postura de pensador liberal, não tenho trava alguma que me impeça de criticar tal pensamento político se ver nele sofismas e afrontas à razoabilidade. Não tenho, em suma, apostilas doutrinais de estimação. Afinal, ser verdadeiramente liberal é ser livre até mesmo para criticar o liberalismo e mudar de convicções se assim julgarmos com a boa razão. No dia em que um liberal for impedido de criticar o liberalismo, essa já não será mais uma escola de pensamento, mas uma seita de fanáticos análogas às demais ideologias escravizadoras de consciências.

Sendo assim, comecemos a análise dizendo que minha postura não é, como o distinto tomista afirmou de Lucas Berlanza e penso que também não hesitaria em afirmar de mim, de uma assumida postura liberal dogmática frente a um catecismo modernista. Simplesmente não tenho apego algum a qualquer ideologia política; me aproximo ou me afasto das visões políticas conforme julgo estarem elas mais próximas ou distantes da verdade dos fatos. O crivo é a verdade factual, e não as sandices de cartilhas ou doutrinas.

Religião e Estado não cabem na mesma caixa:

Muitas ideologias não passam de “religiões políticas” ou, como denominou Russell Kirk: “religiões invertidas” (KIRK, 2014, p. 95) a fim de alimentar mentes também  invertidas e parciais. Na minha vida espiritual não cabe outro Deus a não ser Aquele em que eu deposito diariamente a minha fé; e bem sei, também, que seu trono é muito mais digno que uma cadeira presidencial. Os ensinamentos do Cristo foram dados para além dos meros entraves burocráticos de um Estado. Por fim, Ele deixou claro que o seu reino não é desse mundo (São João 18, 36), inverter tal paradigma é o mesmo que trair o próprio ensinamento do fundador do Cristianismo.

Além de diminuir o ensinamento de Jesus, tal atitude acaba se tornando alimento de massas. Eu temo muito quando a fé é apresentada — ou imposta — através de um colosso oficial como o do Estado, e não a partir de uma atitude familiar ou até individual e sincera de busca do criador. Ainda que a Igreja Católica assuma a missão sacramental louvável de reafirmar na fé os que creem com ela, do que adianta, pergunto eu, uma massa crente feita de indivíduos pessoalmente descrentes? A fé, antes de mais nada, parece ser um artigo íntimo e de aceitação pessoal antes de quaisquer aglomerações piedosas ou pregações campais. Se bem me recordo, Cristo começou a sua vida pública chamando os discípulos pessoalmente antes de se aventurar nas “ágoras” e sinagogas judaicas.

O século XX erigiu muitos Estados abertamente ateus, como os diversos modelos de comunismo ao redor do globo; todavia, apesar de serem governos assumidamente ateus, como atuação política e social adotaram métodos quase que religiosos para a governança de seus diversos modelos de Estado. A ideologia tornou-se fé; os escritos do partido, livros sagrados; o partido, a religião oficial; o Estado, o próprio Deus.

Tal realidade foi vista por vários intelectuais de alta estirpe, ao ponto de hoje ser consolidada uma literatura filosófica e antropológica enorme sobre o assunto. Conhecido como “religião política”, tal tema está cada vez mais ganhando espaço nas academias. Uma grande e competente lista de intelectuais e estudiosos como Eric Voegelin, Raymond Aron, Roger Bastide, Raoul Girardet, Hans Maier, Jean-Pierre Sironneau, George Orwell, Vladimir Tismăneanu, Mircea Eliade, Nelson Lehmann, José Osvaldo de Meira Penna, Olavo de Carvalho, entre outros que já pautaram em artigos e ensaios, ou até mesmo escreveram obras inteiras sobre o tema.

Estado + Religião = Autoritarismo

Raymond Aron relacionou o furor dos Estados modernos, avivados por ideologias de moldes religiosos, com as causas dos absolutismos e das mortes em massa do século passado. Os mesmos espíritos fanáticos que, em muitos casos, se canalizam nas religiões tradicionais, facilmente são transmutados para a fidelidade a um partido, ideologia e Estado determinado quando a fé num ser transcendente é impugnada numa pretensa sociedade ateia. “É verdade que o comunismo atrai ainda mais quando o trono de Deus está vazio” (ARON, 2015, p. 267).

Parecem ideias contrárias e até mesmo impossíveis de se coadunarem: ideologia ateia e fé num Deus; religião cristã e Estado ateu. Mas creiam, o século XX mostrou abertamente o quanto de religião havia no comunismo; como o mito e a postura religiosa que a juventude nazista nutria frente ao Estado, por exemplo, não era somente uma comparação esdrúxula e forçosa de opositores, mas de fato uma assustadora religião política. “Dois erros, aparentemente contrários, mas no fundo interligados, se encontram na origem da idolatria da história. Homens de igreja e homens de fé caem na armadilha do absolutismo” (ARON, 2016, p. 147), diz Aron.

Eric Voegelin, por sua vez, quase entrou em êxtase filosófico ao mostrar como a sanidade ímpar de Santo Agostinho, ao separar a Cidade dos Homens da Cidade Deus, tornou possível a estruturação de um Ocidente sadio em suas teologias e filosofias posteriores; assim como evitou os males ideológicos modernos em quase dois mil anos. O espectro religioso das ideologias modernas, chamou de “Gnose política” ou de “imanentização do eschaton’” (VOEGELIN, 2015, p. 90). A origem desse problema, como mostrou em sua monumental obra: História das ideias políticas, está na forçosa tentativa de Joaquim de Fiore em imanentizar o transcendente e criar na terra uma sociedade perfeita; a essa sociedade perfeita de Joaquim de Fiore chamou de Era do Espírito.

J. O de Meira Penna, em seu livro: “A ideologia do Século XX”, mostra-nos a mesma sanidade de Santo Agostinho que, segundo o ex-diplomata brasileiro, entregou à religião cristã as retas armas filosóficas para o desvincular a fé, das loucuras estatais dos príncipes de mundo secular. A principal virtude de Penna foi apresentar, incansavelmente ao Brasil, através de seus ensaios e livros, as teses de Aron, Voegelin, Nelson Lehmann, e outros intelectuais que despertaram a comunidade filosófica mundial para a aporia das Religiões políticas.

Nelson Lehmann mostrou-nos como a transformação dos anseios ideológicos de poder, em anseios de mudança das constituições essenciais Homem através de normas políticas, fez com que surgisse um desvirtuamento profundo do propósito real de Estado e religião na sociedade moderna. O Estado tornou-se matéria de fé; assim como a fé matéria de Estado. Lehmann chamou isso de “Religiosidade substituta” (LEHMANN, 2016, p. 22).

Sabemos, e isso é bom afirmar pelo bem da prudência, que Nougué não defende um Estado ideologizado aos moldes daqueles que assombraram o século XIX e XX; o que aqui eu busco mostrar é que a religião e o Estado têm seus lugares bem postos na sociedade, e, com toda a certeza, em tais lugares não se inclui uma espécie de fusão, possessão ou anexação entre Estado e religião. Nem a religião civil, como quis Rousseau; nem o Estado católico, como quer Nougué.

Poderiam arguir também que, no caso da tese do tomista, se trata da religião tomando o Estado e não o Estado tomando a religião, como aparece nos apontamentos dos intelectuais citados acima; ora, a esses eu sinceramente questiono: depois que a sujeira e a água pura estão misturadas, que diferença faz se foi a sujeira depositada na água, ou a água depositada na sujeira?

O lugar do Estado e a missão do Cristianismo:

O esplêndido debate entre Jürgen Habermas e o, até então, Cardeal Joseph Ratzinger, em 19 de janeiro de 2004 na Academia Católica da Baviera, em Munique, mostra-nos como o cristianismo se configura como a manta moral da sociedade. Ou seja, como ele serve de alicerce necessário para a estruturação moral e comunal do Ocidente, e não como mero especificismo de um ou mais Estados-nações. Para o magnânimo teólogo alemão, gerar uma “relação polifônica” (HABERMAS; RAZTZINGER, 2007, p. 90) entre fé religiosa e razão secular é algo essencial para a sobrevivência sadia da própria sociedade humana; e nisso facilmente podemos compreender que se trata primordialmente do trato democrático entre as diversas visões políticas e religiosas. Como é patente observar, uma “relação” se faz a partir de duas partes distintas que nutrem um respeito mútuo, e não de uma fusão mal construída entre Estado e religião, fé oficial e fé marginal.

O cardeal afirma ainda que a “interculturalidade” (HABERMAS; RAZTZINGER, 2007, p. 82) é um princípio irrevogável na modernidade e que não pretende ele submergi-la em detrimento de oficialismos quaisquer. Ora, a partir do momento que assumimos um Estado Católico, tiramos o cristianismo da manta estrutural do Ocidente — ou ao menos o dividimos entre duas funções —, lhe dando um protagonismo social e gerencial ao qual a história já mostrou não ser adequado. Noutro discurso, proferido pelo agora Papa Bento XVI no parlamento Alemão, em 2011, reafirma ele o protagonismo do cristianismo na fundamentação da ética social do Ocidente; protagonismo esse vivido através da comunhão vigorosa entre Direito RomanoFilosofia Grega, e Moral Cristã.

Ver hoje a defesa de um Estado Católico — ou seja, de um Estado religioso em última análise, ainda que retoricamente se tente negar tal termo — não me parece sensato e nem muito menos viável.

A Cesar o que é de Cesar, a Deus o que de Deus:

“Dai, pois, o que é de Cesar a Cesar, e o que é de Deus, a Deus” (Mateus 22,21b). Tal sentença não é apenas uma transliteração sem sentido, palavras soltas dentro dos evangelhos. Jesus Cristo, em tal passagem magnífica e profundamente filosófica, dessacraliza o Estado e coloca uma brutal haste entre aquilo que é de Deus e aquilo que é da política dos homens. Não que o cristianismo não deva influenciar a política, mas é certo que não deve gerenciar os instrumentos dela. Cristo apartou de maneira cortante e evidente a sua mensagem e atuação das práticas políticas; apartou seus ensinamentos, que mais tarde se tornariam fundamentos da religião cristã como um todo, da atuação estatal, da política dos césares. Afinal, não é esse o princípio argumentativo de separação religiosa e política que usamos para criticar a Teologia da Libertação e sua ideologização da Fé? Ora, verter um Estado à doutrina católica seria diferente em matéria de politização da fé? Não seria ambos constituídos do mesmíssimo erro?

Após tamanha consideração, apenas tomo cuidado para não tatuarem no Cristo o epiteto de “liberal” e “modernista”, não tardando após isso — como é de costume das turbas — em jogar nos opositores a culpa de suas sandices retóricas. Assim como quero deixar expresso a minha profunda admiração ao Lucas Berlanza, e ao professor Carlos Nougué, ao qual há tempos acompanho seu trabalho e suas análises.

Referências:

ARON, Raymond. O ópio dos intelectuais, Três estrelas: São Paulo, 2016.

KIRK, Russel. A política da prudência, São Paulo: É realizações, 2014.

HABERMAS, Jürgen; RATZINGER, Joseph; SCHULLER, Florian (Org.). Dialética da secularização: sobre razão e religião, São Paulo: Ideias & Letras, 2007

VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas, São Paulo: É realizações, 2015

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