• Carregando...
Dilemas éticos: o prato de feijão vale mais do que ideais? Ou: Martírio vs sobrevivência a todo custo
| Foto:

Em sua coluna de hoje na Folha, o psicanalista Contardo Calligaris toca num assunto que, em minha opinião, é fascinante: os dilemas éticos. Para ele, a única forma certa de pensar em ética é por meio de dilemas, ou seja, não há uma norma única, uma régua única que resolva todas as questões; há apenas escolhas imperfeitas, insatisfatórias. Em seguida, Calligaris compara a ética “universal” sob a ótica pré-moderna com a atual, a visão contemporânea:

A vida é um valor ético curioso e inédito. No mundo pré-moderno, um valor é aquela coisa pela qual vale a pena morrer. Em outras palavras, é fácil reconhecer os valores (fidelidade, honra, palavra dada, honestidade, fé etc.) porque eles estão acima da vida.

A posição contemporânea, ao contrário, coloca a vida como valor supremo ou como uma condição dos outros valores: algo que custe a vida não tem como ser um valor ético. Desenha-se assim um leque, entre dois extremos. 

Do lado da ética clássica, há um extremo em que a morte é erotizada: meu desprezo pela vida prova que sigo grandes ideais. É o que pensam os membros de gangues que se tatuam com caveiras, é o que pensavam nazistas e fascistas quando também usavam a caveira para afirmar que seus valores só podiam ser supremos, visto que estavam dispostos a morrer por eles.

Infelizmente para os praticantes desse extremo, o martírio nunca foi uma prova da existência de Deus, ou seja, nossa morte, por mais heroica que seja, não demonstra que nossos valores mereciam que a gente morresse por eles.

Do lado da ética contemporânea, no outro extremo, aceita-se qualquer covardia, pois nenhum valor respeitável poderia exigir que lhe sacrificássemos a vida. A modernidade pretende que os bons valores sejam baratos. Só falta concluir que os bons valores precisam ser, além de baratos, rentáveis.

Nossa época idealiza a vida nua (a sobrevivência). Sem surpresa: é uma época em que o prato de feijão em casa é mais importante do que qualquer ideal e qualquer tipo de bem comum. 

Sem a pretensão de conhecer a fundo o tema, já que não sou filósofo, vou tentar contribuir com as reflexões. Em primeiro lugar, sobre os dilemas como única forma de pensar ética: tendo a concordar. Não há “soluções” muitas vezes, respostas prontas de acordo com algum manual universal. O que não precisa levar ao outro extremo, de exacerbado relativismo. Alguns pensadores resumiram bem a questão:

“Os maiores e mais importantes problemas na vida são todos de certa forma insolúveis; eles não podem ser solucionados, mas apenas superados.” (Carl Jung)

“Para cada problema complexo, há uma resposta clara, simples e errada.” (H.L. Mencken)

“Não sou jovem o suficiente para saber tudo.” (Oscar Wilde)

“Todo o problema com o mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre tão certos de si mesmos, mas as pessoas mais sábias estão tão cheias de dúvidas.” (Bertrand Russell)

“Nossa liberdade está ameaçada em muitos campos devido ao fato de que estamos muito dispostos a deixar a decisão para o especialista ou aceitar muito acriticamente sua opinião sobre um problema do qual ele conhece intimamente apenas um pequeno aspecto.” (Hayek)

“Muitos problemas não são resolvidos; eles são substituídos por outras preocupações.” (Thomas Sowell)

“Somos condenados a escolher, e cada escolha traz o risco de uma perda irreparável.” (Isaiah Berlin)

Por falar em Berlin, ele foi o grande pensador liberal defensor da postura epistemológica humilde, ou seja, devemos ter em mente que valores incomensuráveis podem estar em jogo, e nossa razão nem sempre fornece uma única resposta correta. Já escrevi aqui sobre as “seitas fechadas”, e como é perigosa essa arrogância de que é possível desenhar todo um código pronto de ética abarcando as infindáveis situações humanas. O mundo é mais complexo do que tal modelo pode prever. Não podemos, enfim, endossar panaceias.

Já em relação ao contraste entre mundo clássico e contemporâneo, começo destacando um alerta feito por Dom Lourenço de Almeida Braga: modernidade é um conceito de tempo, não de valor. Ou seja, devemos tomar cuidado para não confundir moderno com melhor, uma vez que mudanças no tempo também podem produzir resultados piores. Não há garantias de evolução constante, principalmente no que diz respeito à ética. Diz o ex-reitor do Colégio São Bento:

Modernidade, contudo, não é índice de valor, mas apenas de tempo. Há vícios e defeitos modernos, como há virtudes e perfeições, também modernas. Moderno quer dizer atual ou algo que está na moda. Narcotráfico, AIDS, sequestros e outras situações semelhantes são de indiscutível modernidade. Quem dirá que são valores positivos? […] Essa repulsa à ligação de moderno com bom não é implicância de quem já viu muitos modernos enterrados e esquecidos, porque eram fugazes ou possuíam, num certo momento, a aparência ilusória de serem valores positivos, mas a preocupação com o prejuízo que causa a modernomania, ao repelir o antigo, sem maiores exames, simplesmente porque é antigo. É o novidadeirismo. Isso gera uma atitude preconceituosa que impede perceber no antigo o que nele havia de perene.

Feita essa ressalva, acho que o resultado líquido da modernidade tem sido positivo. Não sou saudosista de um passado idealizado, pois lembro que, nele, havia escravidão, mulher adúltera era punida severamente pela lei, a pederastia era crime, etc. Ou seja, houve progressos, o que é inegável. Mas também acho que o pêndulo pode ter exagerado, e que alguns valores, antes caros aos homens, perderam-se de forma lamentável ou até perigosa.

Usando o exemplo de Calligaris, será que é mesmo tão positivo o homem ter abandonado qualquer ideal mais nobre para colocar a sobrevivência acima de tudo? O sacrifício, se antes era louvado, hoje é execrado em demasia? Vemos pais sem saco para educar seus filhos, digo realmente educá-los, vemos casais se divorciando ao menor sinal de fadiga, sem investir no longo prazo, vemos homens pisoteando mulheres para se salvar num náufrago. Sobre isso, escrevi em Esquerda Caviar:

Murray resgata um resumo do código de conduta adotado por todo gentleman do passado. Ser homem significava, basicamente, ser corajoso, leal e verdadeiro, aceitar as punições por seus erros, não tirar proveito das mulheres, ser um marido protetor, gracioso na vitória e  de espírito esportivo na derrota, ter a palavra como garantia contratual, dedicar-se  mais ao modo como o jogo é jogado do que à derrota ou à vitória, e, se diante de um  navio que afunda, colocar mulheres e crianças em segurança antes de se despedir com um sorriso no rosto.

O leitor mais jovem deve estar rindo, incrédulo. Mas isso já foi uma espécie de guia para muita gente. Quando o Titanic afundou, em 1912, a maioria dos sobreviventes era, de fato, composta por mulheres e crianças. Já por ocasião do naufrágio do MS Estônia, em 1994, com quase mil mortos, o grosso dos sobreviventes era de homens jovens. Há relatos de que se tratou de um verdadeiro “salve-se quem puder”. Uma mulher com a perna quebrada implorava por ajuda, e nada.

Será que não se fazem mais homens como antigamente? Estamos vendo a extinção do gentleman? Vale a pena ser um cavalheiro diante de mulheres que se orgulham da “marcha das vadias”? Tem certeza de que o mundo hoje, nesse aspecto, evoluiu? As feministas devem estar felizes com tais mudanças, ao menos aquelas que não foram deixadas para morrer…

Se tudo que importa é sobreviver, então a covardia passa a ser aceita, ou mesmo louvada como um instrumento legítimo, caso ajude a evitar o pior. Fora outros casos, como os jogadores que sofreram uma queda de avião nos Andes e comeram cadáveres humanos, praticando canibalismo. Nelson Rodrigues, escrevendo à época, questionava se nosso “progresso” era voltarmos a agir como animais, levando em conta somente a sobrevivência da carcaça, e nunca valores mais elevados ou espirituais. Ou seja: viver é só o que importa, mas qual vida?

Que fique claro: não tenho apreço pelo conceito do martírio em si. Acho nobre ter um ideal e estar disposto a pagar um alto preço por ele, desde que não vire fanatismo, que não sacrifique amigos e família em nome de uma abstração qualquer. Nietzsche já tinha dito o que Calligaris lembra em seu texto, sobre o martírio não provar a veracidade da crença:

A morte dos mártires, seja dito de passagem, foi uma grande desgraça na história; seduziu… Os mártires prejudicaram a verdade… Ainda hoje não se necessita senão de certa crueza na perseguição para proporcionar a quaisquer sectários uma honrosa reputação. Como? Pode uma causa ganhar em valor se qualquer uma lhe sacrifica a sua vida? É, pois, a cruz um argumento? Escreveram sinais de sangue no caminho que percorreram, e a sua loucura ensinava que com o sangue se atesta a verdade. Mas o sangue é a pior testemunha da verdade; o sangue envenena a mais pura doutrina e transforma-a em loucura e em ódio nos corações. Quando alguém se atira ao fogo pela sua doutrina, que prova isso? Mas verdade é que do próprio incêndio surge a própria doutrina.

O martírio não prova nada, fato. Mas levo em conta alguns pontos, como esse destacado por Martin Luther King: “Se você não descobre uma causa pela qual valha a pena morrer, é porque você não está pronto para viver”. Ele acabou morto pela causa, mas deixou um legado. E morrer, afinal, todos vamos um dia. Será que a única coisa que importa é postergar ao máximo esse encontro inevitável? Que tipo de vida queremos ter, afinal?

Essa característica moderna está presente em todo lugar. Na paranóia alimentar, por exemplo. Virou uma verdadeira religião o culto à saúde, da qual faz parte a cruzada antitabagista, a luta contra o excesso de sal, etc. Não me levem a mal: cuidar da saúde é fundamental. Mas é só o que vale na vida? Viver 100 anos, mas não importa como são aproveitados esses anos todos?

Enfim, são mesmo dilemas em jogo, e não há uma única resposta certa. Valores entram em conflito, e é preciso pesá-los para escolher, sabendo que cada escolha deixa alguma perda no caminho. É a vida. Eu só acho que o pêndulo da era contemporânea extrapolou, o que tem levado muita gente a me ver como um conservador. Não ligo, e não acho ofensa. Não quero retornar a um passado idealizado, e não acho que o mundo era melhor.

Mas acho, sim, que alguns valores importantes foram jogados fora, e isso, além de me entristecer, preocupa-me. Uma sociedade que faz de tudo para sobreviver, não importa como, é uma sociedade cuja ética se torna flexível demais.

Rodrigo Constantino

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]