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Dilemas morais, religiosos e amorosos: o novo livro de Ian McEwan
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Já estou em Tel Aviv, mas meu primeiro texto escrito de Israel não será sobre a nação judaica, e sim sobre o livro que devorei na viagem. Tinha ficado de ler a história do povo judeu, do professor Simon Schama, uma recomendação de João Pereira Coutinho. Mas não foi o que acabei lendo. Explico: ele está no meu kindle, e vinha aprendendo um bocado sobre a origem dos hebreus quando mandarem desligar todos os aparelhos eletrônicos para a decolagem. Peguei o reserva, no bom e velho formato de papel, que levei para tais ocasiões. Não consegui mais parar. Li, como se diz, de um fôlego só.

Trata-se do novo livro de Ian McEwan, A balada de Adam Henry. O escritor inglês aborda vários dilemas morais na obra, que gira em torno de um rapaz de 17 anos com leucemia que precisa de transfusão de sangue para sobreviver, mas cuja família é da seita religiosa Testemunhas de Jeová, que se recusa a aceitar o procedimento. Esse caso cai nas mãos da juíza Fiona Maye, a personagem principal que é do Tribunal Superior, vara de famílias. E vai mudar sua vida.

Seguindo sua mais recente linha, o livro é um embate com o obscurantismo religioso, mas não sem tato, sem abordar o outro lado. O tema é visto em sua complexidade, tangenciando outros aspectos da moralidade e da busca de sentido. Não há respostas fáceis. Como dizia Mencken, afinal, para todo problema complexo há uma resposta clara, simples, e errada. McEwan não foge do desafio de responder aos dilemas sob seu ponto de vista, ou no caso o da juíza racional em um sistema laico. Mas compreende que sempre algo se perde no caminho.

O drama central, porém, pertence à própria Fiona. Prestes a completar 60 anos, bem-sucedida profissionalmente, casada há décadas num relacionamento feliz, seu mundo desaba de repente quando seu marido deseja algo que ela não é mais capaz de lhe dar, ou assim pensa. Sem filhos, e com um desejo maternal reprimido, encontra-se nesse abismo momentâneo de sua vida pessoal justo no instante em que precisa deliberar sobre o caso de Adam, o rapaz de quase 18 anos que não quer o tratamento com sangue “impuro” de estranhos, mesmo ciente de que deverá morrer sem ele. Seu mundo seguro vira de ponta a cabeça da noite para o dia.

No decorrer do livro, o autor vai nos apresentando casos delicados em que juízes precisam decidir, como gêmeos colados que vão morrer sem uma cirurgia de separação, mas que se for feita a cirurgia somente um poderá sobreviver. Ou então o caso de filhos de pais viciados que disputam sua guarda. Ou ainda o caso de uma separação em que um pai religioso e ortodoxo não aceita que a ex-mulher trabalhe e é preciso decidir como será a criação da filha deles, sob qual modelo ético. Em suma, quando e em que circunstâncias cabe ao estado intervir para proteger as crianças de seus próprios pais?

O paternalismo, quando o estado trata adultos como crianças indefesas, é execrável para um liberal como eu. Mas quando o assunto envolve crianças fica mais complicado. Os pais devem gozar de grande autonomia na criação de seus filhos, mas naturalmente há limites. Os pais não podem tudo, certamente. Como definir a linha divisória? Como decidir quando é desejável usar o monopólio da força estatal para garantir os direitos e o futuro das crianças? O autor arrisca uma resposta com base numa passagem de uma sentença conhecida na Inglaterra:

O bem-estar e a felicidade deviam incorporar o conceito filosófico de uma vida virtuosa, relacionando alguns ingredientes relevantes, metas que uma criança poderia perseguir: liberdade econômica e moral; virtude, compaixão e altruísmo; um trabalho satisfatório a exigir empenho na solução de problemas; uma rede florescente de relações pessoais; a conquista da estima de seus pares; e a busca por significados maiores para sua existência, assim como manter, ocupando o lugar central em sua vida, um ou alguns poucos relacionamentos importantes definidos acima de tudo pelo amor.

Uma lista bonita, mas ainda com margem para diferentes interpretações subjetivas. “Os tribunais deveriam se mostrar cuidadosos ao intervir a favor das crianças caso isso contrariasse os princípios religiosos dos pais. Às vezes a intervenção seria necessária. Mas quando?”, pergunta o narrador. A questão da idade pesa, pois o garoto tem quase 18 anos, e nessa idade, a ser completada em três meses, ele teria o direito inalienável de escolher. Mas há que ter uma linha arbitrária separando a “infância” da vida adulta, e até cruzar essa linha, o jovem precisa ser protegido de si mesmo muitas vezes, ou de seus pais fanáticos, se for o caso.

Não vou me aprofundar para não estragar as surpresas de quem não leu ainda o livro e pretende fazê-lo, o que recomendo. Mas fecho, tentando manter de alguma forma o mistério, lembrando aquilo que Freud já alertava, se não me engano: cuidado para não derrubar todas as ilusões e fantasias da pessoa sem ter nada a oferecer para colocar no lugar. O resultado pode ser um profundo vazio existencial, um desespero niilista, ou a busca por um novo fanatismo. A própria juíza, mulher até então segura de si, ambiciosa e feliz, terá de encarar seus fantasmas, descobrir de onde extrair novas forças para não desmoronar, para seguir em frente, reconstruir sua vida. E todos nós não temos, cedo ou tarde, que passar por provação similar nesse breve espaço de tempo entre o nada e o nada?

Rodrigo Constantino

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