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O fracasso político da narrativa do golpe
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Por Marcelo Barbosa Câmara, publicado pelo Instituto Liberal

Aparentemente há um esgotamento do ciclo de poder da esquerda brasileira. O segundo ano do que seria o quarto mandato do Partido dos Trabalhadores trouxe à tona, como defesa contra o processo de impeachment de Dilma Rousseff, a alegação de que a oposição estaria, em conjunto com os inimigos do povo e de suas conquistas, articulando um golpe contra o governo popular.

Muito se comenta acerca da falácia dessa alegação: seu viés criminoso enquanto calúnia e atentado às instituições da República, sua formulação como arma de mobilização de militantes e simpatizantes do partido e na sua busca, frustrada, de causar impacto na opinião pública internacional.

Mas é interessante que seja levantado mais um ponto que se configura no campo da estratégia de longo prazo dos formuladores do pensamento da esquerda latino-americana, que é a criação de uma narrativa, uma versão própria a respeito da falência de seus projetos de poder.

Não é a primeira vez que a América Latina se vê enredada com grupos de esquerda no poder, ou por eles influenciada. A década de 60 do século passado foi marcada no Brasil por esse fenômeno político.

É certo que não se pode caracterizar João Goulart como um clássico líder de esquerda, mas foi em torno de seu governo que ligas camponesas, sindicatos, movimento estudantil e partidos comunistas viram a oportunidade de buscar empreender projetos políticos que estavam próximos a suas perspectivas. Suas propostas ou foram encampadas por Jango, ou eram formas de empurrar o líder populista para a esquerda, à medida que sua gestão presidencial se mostrava catastrófica.

A radicalização de seu governo – a cada instante que perdia força política – se configurava enquanto um programa irrealizável, uma pirotecnia oriunda de um movimento político e de uma esquerda que se arvoravam – cada um a seu modo – legítimos representantes dos interesses populares e dos trabalhadores, mesmo que os tais interesses viessem da própria formulação do movimento e do líder populista, independente do que seriam as aspirações do povo brasileiro e do que fosse viável para o Brasil.

Entretanto – no discurso que se perpetuou na esquerda – a realização concreta do ideário que gravitava em torno de Jango foi cerceada pela interrupção do processo democrático no país. Assim, de uma real quebra do processo democrático, os fazedores da história oficial conseguiram a flexibilidade e a licença poética para deduzir que outro Brasil poderia ter sido construído com o populismo de Jango e na influência das forças de esquerda que, diga-se de passagem, menosprezavam a democracia tanto quanto parte da oposição àquele governo.

Essa noção de interrupção de um processo – que seria viável – acabou se tornando hegemônico no meio acadêmico e no senso comum de parte considerável dos brasileiros, inclusive vendida em livros didáticos como a real história do período.

A realidade de uma ditadura que sobreveio à deposição de Jango não advém do fato do pretenso caráter popular do governo e de suas propostas, que para o presidente, seus partidários e grupos de esquerda da época, seriam o suprassumo do desejo e do interesse popular e da nação, mas da incapacidade das instituições e políticos da época de solucionarem – dentro dos limites do estado de direito e da democracia – o caos econômico, politico e social estabelecido pela incapacidade e irresponsabilidade política do líder populista.

Assim, a narrativa que a esquerda formou sobre a queda de Jango acabou por solidificar uma noção irreal de que haveria viabilidade naquela política.

Saltando vinte anos em nossa história, relembremos o que dizia São Marx: “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”; e eis que a coisa começa já na década de 80, em pleno processo de redemocratização do país.

A partir da influência de sindicalistas, de parte da Igreja Católica dominada pela Teoria da Libertação, comunistas que haviam participado da luta armada no período militar, acadêmicos, movimentos sociais e outros portadores absolutos da bondade, acontece a fundação – sob a liderança máxima de Lula – do Partido dos Trabalhadores.

Após um regime militar que havia reduzido a vida política do país, o novo partido surge como esperança de renovação da política nacional e de um rumo mais justo à organização da sociedade; reivindicando para si a representação dos oprimidos e indo – durante os anos – se autointitulando o baluarte da moral na política. Tal qual o jingle de campanha de seu primeiro candidato a prefeito em São Paulo, o PT era – naquele tempo e para muitos – “diferente de tudo que esta aí”.

Lula, de candidato a governador em 1982, deputado federal constituinte eleito em 1986, forte candidato em todas as eleições presidenciais, foi construindo sua imagem de líder carismático e símbolo de um partido que trazia consigo a esperança de uma sociedade mais justa e de um universo político distante do toma lá da cá dos velhos políticos.

Enfim, eleito presidente da República em 2002, vai – até meados de seu segundo mandato – mantendo os cânones básicos da política econômica formadas nos anos FHC.

Ainda em 2005, com a eclosão do Mensalão, sua imagem se arranha para parte de seus tradicionais eleitores.

Por conta do mensalão, nas eleições de 2006, o perfil de seu eleitorado se altera em boa medida. Muitos dos eleitores que votavam em seu partido buscam outros candidatos, e o vazio de votos é preenchido pelos mais pobres, beneficiários de políticas sociais mínimas, como o Bolsa Família, programa oriundo dos tempos de FHC, renomeado e incrementado na gestão Lula.

Surfando em boas ondas no mercado internacional de commodities, que até metade de seu segundo mandato impulsionava a economia brasileira, Lula termina sua gestão com mais de oitenta por cento de aprovação. Porém, se olharmos detidamente para seus oito anos de presidência, o dito “grande líder” não propôs medidas fundamentais que pudessem ter encaminhado o país a outro patamar.

Nada de reforma tributária, nada de reforma política, nada de reforma da previdência e nada de cuidar de muitos dos gargalos da economia brasileira. Lula passa seus dois mandatos articulando a forma pela qual se manteria no poder e como faria seu partido continuar a frente do governo federal.

Nessa batida, lança sua sucessora, a obscura Dilma Rousseff. Quadro político sem nenhuma experiência em cargos eletivos, e que teve sua carreira no governo federal criada de maneira a encobrir sua inequívoca inépcia como gestora pública e nulidade enquanto ser político.

Com ela o país conhece a chamada “nova política econômica”, um keynesianismo mal ajambrado e eivado de gastos inconsequentes; fenômeno que fomentou ainda mais – o conhecido no Brasil – capitalismo de compadres do governo.

O grau de descontrole fiscal avança consideravelmente e é nesse cipoal que aparecem as pedaladas de Dilma, fato que embasou o processo de impeachment.

Dentro dos mandatos petistas, criou-se o programa habitacional Minha Casa Minha Vida, um programa pretensamente anticíclico e que atendeu com subsídios generosos milhões de pessoas. Houve mérito no programa, porém, ele não conseguiu fugir do dilema da marginalização espacial dos atendidos, sobretudo na faixa 1 do programa, reservado aos mutuários de menor renda.

O Bolsa Família, programa que efetivamente atende aos mais pobres, continuou sem um controle adequado, sem porta de saída e com um forte viés demagógico e eleitoreiro.

O lado underground petista veio à tona de vez. Além do mensalão, passamos a conhecer sua matriz, o petrolão; esquema que financiava o projeto de poder do partido, e que vem a cada passo da operação Lava Jato, cercando suas lideranças.

Todo o emaranhado de questões foi aos poucos se somando, e com a questão do estelionato eleitoral do PT nas eleições 2014, a situação da presidente, uma figura notoriamente desprovida de qualquer habilidade de articulação política, chega ao limite e milhões vão às ruas para dizer que é intolerável a continuação do PT e sua presidente no poder.

Após afastamento de Dilma com a admissibilidade do processo impeachment pelo Senado, passados alguns dias, o PT publica uma resolução que – dentre outras questões – diz ter sido um erro não ter controlado a mídia e nem as forças armadas.

O controle social das mídias já era projeto antigo do partido, mas, pelo menos publicamente, a ideia de controlar o Exército surge pela primeira vez.

Em suma, temos um partido de esquerda eivado da perspectiva de uma revolução gramsciniana, nada mais do que uma concepção de franco viés totalitário, em que a opinião e a vontade de outros grupos políticos deve ser esmagada, posto que o ideário do partido contém a única verdade possível.

Essa vontade de dominar todas as instâncias da sociedade, com um pensamento que emane do partido vem acompanhada da incapacidade do PT e aliados de formular políticas econômicas viáveis para o crescimento do Brasil e de nossa inserção no mundo globalizado.

Uma educação básica e fundamental desastrosamente fraca, mais de 50.000 assassinatos por ano, sistema de saúde que não atende às necessidades da população, uma infraestrutura defasada onde o saneamento básico é um flagelo; eis aí outra parte do imbróglio que em mais de 13 anos no poder o PT não foi capaz de encaminhar soluções.

Enfim, todo o conjunto da obra aponta não só para o esgotamento do ciclo de poder petista, mas uma falência da proposta de socialização desse tipo de esquerda, que gravitou em torno de Lula e seu partido.

O discurso do golpe vem daí: justificar a inépcia quase que absoluta em cumprir suas promessas e em satisfazer as esperanças que fomentou. Para isso, deve haver fatores externos em que possam colocar na conta do fracasso. São as tais forças conservadoras, os golpistas da mídia, o Judiciário, o Ministério Público, os tucanos, Temer, Cunha, Sergio Moro, Lava-Jato, Rede Globo, os coxinhas, a classe média, os analfabetos políticos, enfim, os outros.

A história da esquerda latino-americana e brasileira precisa das palavras de ordem: “É Golpe! É Golpe! É Golpe!”, para quem sabe – no futuro – possam de novo tentar mais um de seus golpes.

* Marcelo Barbosa Câmara é doutor em Ciências Sociais (Política) pela PUC/SP.

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