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O pensamento tribal leva à torcida que mata a verdadeira análise
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Um dos fenômenos mais interessantes da era das redes sociais é o tribalismo. Indivíduos logo encontram seus pares e formam grupos coesos, tribos virtuais, e a partir de então a análise independente dá lugar à torcida. A fidelidade é ao grupo, não aos princípios. A polarização é imediata: ou se está com o grupo, de forma monolítica, ou se está contra ele. Companheiros e inimigos: o mundo acaba reduzido a essa fórmula binária.

Coisas realmente estranhas ocorrem por conta disso. Figuras claramente ambíguas acabam se transformando em ícones da perfeição ou são demonizados por completo. Chega-se ao oposto do nefasto relativismo: as “convicções” de que “os seus” nunca erram, e “os outros” sempre erram. Não há nada “in between”, o cinza desaparece, dando lugar apenas ao preto e ao branco. Malabarismos são feitos para sustentar as incoerências dentro do grupo.

Luciano Ayan comentou recentemente um caso claro desses, quando “bolsominions”, aqueles que idolatram Jair Bolsonaro e não admitem qualquer possibilidade de deslizada do “mito”, partiram até para a defesa de alguém como Delfim Netto, quando saiu numa entrevista do Estadão que o economista poderia ser assessor do candidato. Delfim, o “Sarney da economia”, está perto do poder desde o regime militar até Lula e Dilma, mas eis que um sujeito desses foi elogiado por quem não conseguia criticar Bolsonaro, como diz Ayan:

Ricardo Santi fez uma crítica construtiva sobre alguns eleitores de Bolsonaro: “Quando propagaram a notícia falsa de que o Delfim Neto seria ministro do Bolsonaro, eu vi alguns fãs do Bolsonaro que, ao invés de irem procurar a verdade e descobrirem que a notícia era falsa, começaram a defender o Delfim Neto. Isso é preocupante. Bolsonaro é muito bom, mas no fã clube dele tem muitos idiotas. E a esquerda sabe usar disso muito bem.”

Este é o maior problema. A partir do momento em que o Bolsonaro faz qualquer coisa condenável, existe uma parcela de seus eleitores que apoia tal ato, sem qualquer senso crítico.

Em tempo: eu apoio o Doria, mas acho que ele precisa pagar o preço se não botar no olho da rua esse secretário da Educação mancomunado com o PSOL. E tem que ser desgastado até fazer isso.

Senso crítico talvez seja a expressão mais importante aqui. Ele é a primeira vítima numa “guerra política”, pois precisamos fazer de tudo para defender nossos “soldados” e eliminar os “inimigos”. Isso ficou mais claro ainda agora com os ataques de mísseis Tomahawk que o presidente Trump autorizou contra o governo sírio. Foi Trump quem autorizou? Então um lado precisa aplaudir e o outro precisa repudiar, ambos sem qualquer espaço para análise imparcial. Comentei sobre isso:

Nada comentei ainda sobre os ataques americanos na Síria. Medida arriscada mesmo. Estou avaliando e refletindo, atitudes incomuns na era das redes sociais, com milhões de “especialistas” em tudo. Mas pergunto: se Trump nada fizesse, a turma indignada com o sofrimento das crianças vítimas de armas químicas reclamaria das autoridades ocidentais olharem passivamente tanta barbaridade; se Trump nada fizesse, essa gente diria que ele é capacho de Putin; se Obama autorizasse os ataques, esse pessoal diria que foram necessários, justos e até humanitários. Ou seja, eis o ponto: qualquer coisa que Trump fizer será considerada errada, e tudo que Obama fazia era visto como certo. O viés ideológico mata a verdadeira análise.

Fico feliz em ver que essa postura está alinhada com a de gente que muito respeito, como Alexandre Borges no Brasil e Nassim Taleb no exterior. O próprio Borges fez uma análise detalhada da reação de cada grupo, com seus possíveis motivadores, e concluiu:

Ainda está cedo para certezas. Taleb tem toda razão ao sugerir que a melhor postura no momento é de prudência. É uma pena ver o desespero de muita gente em se posicionar de forma definitiva, de ser o farol em meio ao maremoto, e por isso acaba abraçando qualquer teoria desde que ela ajude a fazer seu propagador soar como alguém que “sabe das coisas”. Uma má notícia aos sabichões: neste momento, ninguém pode ter certeza absoluta de nada. Quem falar que tem é mentiroso, iludido, inocente ou louco. Vamos acompanhar.

Mas, como dizia Bertrand Russell, “o problema com o mundo é que os idiotas e fanáticos estão sempre certos de si mesmos, mas as pessoas mais sábias estão tão cheias de dúvidas”. Alimentar um pouco mais de dúvida em meio a tantas “certezas” talvez seja a postura mais sábia mesmo. E se esforçar para evitar o tribalismo, que mata a análise em troca da torcida, faz-se fundamental para se evitar equívocos monumentais.

Rodrigo Constantino

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