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“O que faz do brasil, Brasil?” – conversando com a obra de DaMatta
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Por Lucas Berlanza, publicado pelo Instituto Liberal

A preocupação do renomado antropólogo Roberto DaMatta, professor emérito da Universidade de Notre Dame, em investigar a identidade nacional brasileira encontra no opúsculo O que faz do brasil, Brasil? (1984) uma pertinente síntese. Dado nosso profundo interesse na matéria, pareceu oportuno extrair certas reflexões de possível impacto prático das análises que ele fez.

O curioso título, donde DaMatta parte para construir sua apreciação, refere-se à busca pela essência, pelo conjunto de caracteres que fazem com que o “brasil” – termo de valor diminutivo, “nome de um tipo de madeira de lei ou de uma feitoria interessada em explorar uma terra como outra qualquer” – se torne “Brasil” – “um povo, uma nação, um conjunto de valores, escolhas e ideais de vida”. Em necessária modéstia, DaMatta pretendeu no pequeno livro não esgotar uma conceituação do que seria a alma brasileira, do que a distinguiria em termos absolutos como um conceito particular entre todas as outras nações, mas tentar se aproximar desse conceito hipotético com base em características peculiares que se manifestam em festas carnavalescas, refeições, leis e regras, costumes, esportes e, em última instância, na linguagem com que a sociedade brasileira codifica todas essas práticas e aspectos da vivência. Com isso, ele deixa de lado os heróis, os grandes fatos históricos, as grandes reviravoltas políticas e outros aspectos com que, pessoalmente, temos mais hábito de lidar no âmbito da elaboração teórica.

DaMatta está mais preocupado em entender as minudências da realidade social e popular, uma espécie de “subtexto” por trás da mentalidade geral, que molda posturas, qualidades e defeitos limitadores. Cada coisa tem seu lugar e essa preocupação em específico tem extrema relevância se quisermos pensar em reformas que realmente sejam absorvidas pelo país. Uma sociedade não é um colóquio de economia, restrito a métricas e termos técnicos esvaziados de substancialidade; ela tem cores, vida, hábitos arraigados e símbolos usuais que precisam ser inseridos na conversa, caso se deseje colocar em prática os melhores princípios abstratos, de outro modo vazios e ineficientes.

DaMatta quer mostrar a quem interessar possa “o Brasil do povo e das suas coisas”, da “comida, da mulher, da religião que não precisa de teologia complicada nem de padres estudados” das “leis da amizade e do parentesco, que atuam pelas lágrimas, pelas emoções do dar e do receber, e dentro das sombras acolhedoras das casas e quartos onde vivemos o nosso cotidiano”, o Brasil “que de algum modo se recusa a viver de forma totalmente planificada e hegemonicamente padronizada pelo dinheiro das contas bancárias ou pelos planos quinquenais dos ministérios encantados pelos vários tecnocratas e ideólogos que aí estão à espera de um chamado”. Para atingir esse intento, ele trabalha com generalidades e estereótipos, que certamente não se aplicarão a todos, mas não deixam de ter sua efetividade.

A identidade “relacional” do Brasil

“A identidade se constrói duplamente”, DaMatta apregoa, fugindo ao simplismo e destacando a existência de duas principais abordagens de distinção do Brasil em comparação com outras sociedades e identidades nacionais. Uma, por “meio dos dados quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar”; a outra, “por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde nos podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena. Aqui, o que faz o brasil, Brasil não é mais a vergonha do regime ou a inflação galopante e ‘sem vergonha’, mas a comida deliciosa, a música envolvente, a saudade que humaniza o tempo e a morte, e os amigos que permitem resistir a tudo…” Em momento algum o antropólogo propõe que ignoremos os nossos dilemas e intempéries nacionais, mas ele parece acreditar que as respostas para eles serão encontradas se observarmos o país em suas diferentes faces e não apenas uma só; esses aspectos irritantes do subdesenvolvimento crônico e esses aspectos vivos e ativos das relações afetuosas locais e das manifestações artísticas têm determinantes comuns, que podem ser identificados em sua univocidade através de alguns pontos cardeais.

Caso uma apreciação do povo brasileiro tenha a pretensão de ser mais completa e menos compartimentada, ela terá, para DaMatta, de empreender esse casamento e identificar esses pontos. “Casamento”, aliás, seria uma boa expressão para introduzí-los. O Brasil, para DaMatta, egresso da monarquia tradicional lusitana por três séculos e de um Império socialmente decantado, com base escravista, é justamente um casamento, uma mescla profunda de elementos tradicionais, “familiares”, clânicos, aristocráticos e, por isso mesmo, “tribais”, e elementos modernos. Essa decantação clânica e “familiar” que acaba por se traduzir, sob uma perspectiva positiva, em pluralidade de grupos sociais e horizontes simbólicos, poderia explicar a dificuldade da imposição absoluta de totalitarismos e supremas “ideias-força” sobre tudo e todos, uma vantagem comparativa da sociedade brasileira. Estaria relacionada, também, com a necessidade de assumir muitos papeis diferentes na vida de acordo com os espaços para onde se vai e nos quais se interage e com aspectos das diferentes manifestações culturais que procuram sempre “incluir” e encontrar “pontes” entre as pessoas – uma cultura, portanto, extremamente “relacional”, calcada na mistura, na busca do “meio”, da negociação e da divisão de tudo, o que se reflete, como DaMatta procura demonstrar, até na dança e na comida. Um símbolo disso seria o feijão-com-arroz, uma síntese que “reúne definitivamente arroz e feijão, construindo algo como um ser intermediário, desses que a sociedade brasileira tanto admira e valoriza positivamente”.

Esse fato se traduziria, assim, “no mundo econômico”, pela combinação “de uma economia altamente estatizada” com uma iniciativa privada “ainda importante”; na religião, pela mescla entre “catolicismo” e “religiões afro-populares”; na cosmologia em geral (literatura popular e erudita), na “ânsia de criar personagens intermediários, gente que pode permitir a conciliação de tudo o que a sociedade mantém irremediavelmente dividido por um movimento inconsciente”“Moderna e tradicional”, a sociedade brasileira combinou “o indivíduo e a pessoa, a família e a classe social, a religião e as formas econômicas mais modernas”, originando “espaços internos muito bem divididos e que, por isso mesmo, não permitem qualquer código hegemônico ou dominante”, mas assaltados por constante “obsessão pela ligação” em seus hábitos, mesmo que seja a ligação apenas com os mais próximos.

O “jeitinho” e o dilema brasileiro

Por outro lado, em termos negativos, dessa característica e dessa formação social adviriam também duas características lamentáveis do nosso comportamento. Uma delas, o pedantismo do famoso “você sabe com quem está falando?”, próprio de quem apela, mais uma vez, ao “relacional”, ao “clã”, à “família”, ao sobrenome. Em outras palavras: eu, que fiz a lei, e para quem a lei é feita, posso descumprí-la. Os outros, coitados, que a ela se curvem!

A outra característica, de natureza similar, seria o famoso “jeitinho brasileiro”, definido pelo esforço por conseguir ajustar as leis universais às conveniências pessoais, mediante, muitas vezes, a busca de atalhos argumentativos que aproximem o fiscal, o aplicador da lei, daquele que quer “burlá-la” (torcer pelo mesmo time, ter um amigo em comum, ter vindo do mesmo lugar, tudo vale para estimular o alvo a flexibilizar as regras em seu favor).

“O dilema brasileiro”, diz ele, reside “numa trágica oscilação entre um esqueleto nacional feito de leis universais cujo sujeito era o indivíduo e situações onde cada qual se salvava e se despachava como podia, utilizando para isso o seu sistema de relações pessoais”, opondo-se “o indivíduo”“sujeito das leis universais que modernizam a sociedade”, à “pessoa”“sujeito das relações sociais”, restando a “malandragem” e o “jeitinho” como caminhos do meio para fazer, na prática, com que um e outro negociem.

O autor enaltece ainda o Carnaval como uma festa que consegue diluir em boa medida essas separações e hierarquias e arrastar a sociedade como um todo a uma mesma grande atmosfera, como que em um ápice dessa vocação “relacional”, reduzindo as decantações. DaMatta parece acreditar, como enuncia na conclusão de seu livro, que um extravasamento desse espírito para outras esferas poderia superar – e aqui nos permitimos uma extrapolação interpretativa – o “insolidarismo”, a fragilidade do “espírito público” de que falava Oliveira Viana. É um símbolo interessante, embora um tanto abstrato demais, mas acreditamos que DaMatta se aproxima melhor de atacar um ponto nevrálgico quando identifica que o “jeitinho” é, muitas vezes, uma resposta à maneira como as autoridades e o Estado se organizam e legislam:

“Não há no Brasil quem não conheça a malandragem, que não é só um tipo de ação concreta situada entre a lei e a plena desonestidade, mas também, e sobretudo, é uma possibilidade de proceder socialmente, um modo tipicamente brasileiro de cumprir ordens absurdas, uma forma ou estilo de conciliar ordens impossíveis de serem cumpridas com situações específicas, e – também – um modo ambíguo de burlar as leis e as normas sociais mais gerais.”

Esses atalhos culturais lamentáveis criaram corpo muito em função da tentativa de reagir à fúria legislativa das ficções jurídicas. Nossas leis não se calcam na razoabilidade social, não encontram acolhida na vida real e, por isso, “não pegam”. Assim também, lamentavelmente, as nossas Constituições.

Consequências práticas

A conclusão de DaMatta, indo para uma dimensão mais prática, é que “insistimos em ‘ler’ e interpretar o país pela via exclusiva da linguagem oficial que se forma no espaço generalizado da rua, espaço das nossas instituições públicas e que sempre apresenta um discurso politicamente sedutor, pois que sistematicamente normativo”. Porém, ele questiona, “como se pode corrigir o mundo público brasileiro por meio de leis impessoais, se não se faz simultaneamente uma séria crítica das redes de amizade e compadrio que embebem toda a nossa vida política, institucional e jurídica?”. À crítica objetiva e prática “que fala com o idioma da economia e da política pelo mundo da rua”, é preciso “somar a linguagem da casa e da família e, com ela, o idioma dos valores religiosos que também operam e, por isso, determinam grande parte do comportamento profundo do nosso povo”.

Acreditamos que a tradição liberal e a tradição conservadora têm muito a contribuir para um enfrentamento do problema brasileiro, partindo desses pontos cardeais de DaMatta. Deixamos de lado, propositadamente, as reflexões do antropólogo sobre racismo, que não nos parecem pertinentes aqui e das quais, pelo menos do ponto de vista das soluções apresentadas, discordamos – afinal, DaMatta defende as cotas raciais, que para nós são um absurdo moral e nada inclusivo.

A tradição liberal, primeiramente, identificará na dimensão exorbitante do Estado e em seu exercício sem limites do poder de estabelecer ficções jurídicas e privilégios, estimulando o patrimonialismo e os conchavos, uma das principais fontes da manutenção das divisões profundas, da pobreza e de maus hábitos como o “jeitinho”. A boa tradição conservadora valorizará os aspectos culturais e do universo de valores que DaMatta quer ver inseridos na reflexão, sem os quais ela permanece incompleta e atuante apenas na superfície.

Para ele, os costumes e referenciais simbólicos usuais devem ser encaixados nas reflexões políticas. Só o serão se a “nova direita” brasileira dispensar o atalho da mera ojeriza inconsequente ao seu país e à sua gente e souber trabalhar para qualificar lideranças e vozes capazes de se expressar nos diversos espaços de expressão cultural da sociedade, em uma meta de longo prazo que, só ela, poderá realmente transformar o Brasil para melhor.

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