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Para compreender a Grande Recessão de 2008 e seus impactos até hoje
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Quando a bolha imobiliária estourou em 2008, o capitalismo pareceu ficar em xeque, e os velhos profetas do Apocalipse resgataram as previsões catastróficas marxistas sobre o fim do livre mercado. A dimensão da crise, com paralelo apenas na Grande Depressão de 1929, mexeu com crenças e ideologias no mundo todo, e podemos sentir seus desdobramentos até hoje. Um lado acusou o mercado por tudo, enquanto outro tentava mostrar que as impressões digitais dos governos intervencionistas estavam em todas as cenas do crime.

Fugindo de uma visão maniqueísta e reducionista, o jovem diplomata Diogo Ramos Coelho lançou em 2014 um ótimo livro sobre o assunto, provando que os “barbudinhos do Itamaraty” ainda não conseguiram destruir a qualidade intelectual dos que se formam pelo Instituto Rio Branco. O conhecimento dele acerca dos temas econômicos e financeiros é profundo, e sua forma de abordá-los, didática. O livro Mundo em crise: A história da crise financeira, seus impactos nas relações internacionais e os atuais desafios é uma boa aula de finanças, não apenas para os mais leigos.

Com vasta fonte bibliográfica, tanto de um espectro ideológico como do outro, Coelho apresenta ao leitor as teses que sustentam as falhas do mercado como causa principal da crise, assim como o contraponto do lado liberal, inclusive inspirado na Escola Austríaca, que argumenta pelo lado das falhas de governo como epicentro dos problemas. A conclusão do autor não escolhe partido único, e adota uma postura mais realista de que, provavelmente, estamos falando de uma mistura entre as duas coisas.

Quando eclodiu a crise, eu escrevi vários artigos apresentando a versão liberal dos fatos, tentando defender justamente que era muito prematuro condenar os mercados, e que o governo tinha grande parcela de culpa. Por ser uma voz minoritária em meio a uma avalanche de ataques ao capitalismo e à globalização, esse tipo de defesa acabou pecando pelo excesso de simplismo eventualmente, como se o estado fosse o único responsável e os mercados não tivessem nada a ver com a crise. Diogo evita essa armadilha, e trata com a devida cautela tema tão complexo.

Mas sem dúvida sua análise não vai agradar aqueles que adoram odiar o capitalismo liberal, por motivos ideológicos. Quem quis ver na crise de 2008 a “pá de cal” do regime capitalista, como se fosse o análogo à queda do Muro de Berlim para o comunismo, não terá nos argumentos e fatos trazidos pelo autor um aliado. Após alguns capítulos teóricos sobre o funcionamento dos mercados financeiros e a formação de bolhas, Diogo sustenta que a ordem vigente, vista ainda como capitalista e liberal, mostrou-se resiliente aos choques e capaz de sobreviver, produzindo prosperidade para a maioria.

Afinal, não estamos falando de um regime parido em algum escritório pela mente de meia dúzia de seres “iluminados”, e sim de algo que vem sobrevivendo ao teste do tempo, demonstrando capacidade de adaptação e evolução. “Independentemente das preferências individuais”, escreve Diogo, “é fundamental entender que as atuais democracias de mercado são produtos da evolução histórica. Esse sistema de organização social foi construído paulatinamente, em pelo menos trezentos anos de distintas batalhas, por meio de diferentes disputas sociais, econômicas e políticas – entre as quais se destacam a revolução inglesa, a revolução francesa, a revolução americana e a revolução industrial”.

Ou seja, os pilares das democracias de mercado não seriam tão frágeis assim, como os detratores do capitalismo gostariam de pensar. E mesmo sob um clima crescente de incertezas, fruto da crise que ameaçou o mundo, não há alternativa concreta disponível. Alguns chegaram a flertar com o “capitalismo de estado” chinês, como se um novo “consenso de Pequim” pudesse ser a resposta ao capitalismo instável. Mas poucos levam a sério tal receita, e os próprios chineses tentam caminhar cada vez mais na direção contrária, para abrir seus mercados e reduzir o grau de interferência estatal na economia, motivo de inúmeros riscos atuais.

Diogo reconhece que boa parte dos problemas foi o resultado de medidas estatais, como a manipulação da taxa de juros artificialmente reduzida, o fomento do crédito imobiliário e os desajustes nas contas públicas. Mas ele também aceita o argumento de que os mercados, inseridos nesse contexto, demonstraram comportamento que não pode ser visto como racional, de acordo com a teoria clássica. O risco de cauda foi sistematicamente ignorado pelos agentes, em parte por conta do risco moral criado pelo próprio governo, ao garantir o salvamento de empresas ou indivíduos insolventes. Ainda assim, tenta encontrar um denominador comum, uma interseção entre as diferentes abordagens:

As explicações heterodoxas e ortodoxas, apesar de enfatizarem fundamentos econômicos e causas distintas, podem ser entendidas como análises complementares. Culpar isoladamente mercados ou governos pela crise fornece uma leitura parcial da complexidade do problema. É por meio da análise da interação entre mercados e governo que se pode delimitar e entender as causas da crise atual. 

O autor é realista a ponto de saber que os resultados desiguais dos mercados globalizados acaba gerando pressões sociais que políticos tentam atender, muitas vezes de forma populista ou míope. O estímulo ao crédito e ao consumo das famílias é justamente parte dessa estratégia política de lidar com as tensões naturais de um mundo globalizado dinâmico, até porque a alternativa exige coragem de estadista, com foco no longo prazo e medidas estruturais que possam aumentar a produtividade do trabalhador. A saída mais fácil é liberar o crédito e fingir que a conta nunca vai chegar.

Nas partes finais do livro, Diogo mergulha mais a fundo na diplomacia propriamente dita, e usa seu know-how de Relações Internacionais para analisar a reação coordenada dos países envolvidos na crise. É sua opinião que esta se mostrou satisfatória, pois foi capaz de impedir um destino trágico como o da década de 1930. O veredicto ainda não saiu em definitivo, e ainda hoje vemos os desmembramentos da crise de 2008, como no caso grego. Também não sabemos ainda o que vai acontecer quando os estímulos estatais forem retirados. Será que a economia americana, em recuperação, conseguirá respirar sem os tubos da UTI?

Ainda assim, Diogo tem uma visão favorável da articulação entre diferentes entidades globais, e cita como exemplo de sucesso a OMC, cujos esforços impediram um recrudescimento acentuado do protecionismo comercial. Houve um clima tenso de novas rodadas de fechamento no começo da crise, mas que foi logo mitigado. “É possível concluir, portanto, que a Grande Recessão não provocou aumento constante e duradouro das barreiras comerciais”, diz o autor. Vários acordos bilaterais foram assinados desde então, apesar de o Brasil ficar para trás nisso. A globalização, enfim, sobreviveu. Deixo as considerações finais com o autor:

Apesar dessas críticas, é possível afirmar que a ordem liberal contemporânea é forte, densa e resistente, com regras e instituições multilaterais de alcance global, que perpassam diversos temas: econômicos, políticos, ambientais, tecnológicos, sociais e de segurança. Essa estrutura institucional representa um dos grandes sucessos da era inaugurada após a Segunda Guerra Mundial. A ordem liberal contemporânea, regida por ampla coalizão de democracias de mercado, lançou as bases para níveis sem precedentes de cooperação – com compartilhada autoridade sobre as relações internacionais. Essa ordem demonstrou-se capaz, inclusive, de resistir a mudanças bruscas na distribuição de poder e de acomodar potências emergentes.

Rodrigo Constantino

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