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Por que ocorre a negação da religião no debate público?
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Por Sergio Renato de Mello, publicado pelo Instituto Liberal

A religião não pode sair da pauta do debate público, ainda que seja para negá-la! Ao menos, ela não pode ser abolida por uma certa intolerância científica  que reina no universo dos debates públicos, providos por conhecimentos decisórios intencionalmente preparados com o fim de eliminar qualquer disputa mais sensível ao natural e, portanto, mais profunda e acirrada. O conhecimento dessa forma conglobante se torna totalitário, no qual se inclui formas de dizer e decidir totalitárias que desfiguram a natureza verdadeira da disputa.

E as razões para tanto são de duas ordens.

A primeira delas é jurídica.[1] Além do texto do preâmbulo constitucional, que tem valor de interpretação para toda a constituição, existem direitos com ligação religiosa estabelecidos como direitos fundamentais ou individuais. É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (art. 5º, inciso VI). Não pode o Estado assumir papel de intermediário entre Deus e os homens, indicando essa ou aquela divindade a ser seguida por todos. Entretanto, ainda que o Estado brasileiro seja ou deva ser neutro ou laico nas questões afetas à religião,[2] dela não pode desbordar como se ela fosse inútil para o enfrentamento de questões das mais dignas e salutares, como vem acontecendo principalmente no meio jurídico. Invoco em abono disso lembrando o caso julgado pelo STF recentemente, por meio de habeas corpus, em que a decisão foi pelo direito de interromper a gravidez até o terceiro mês de gestação.

A outra razão é de cunho cultural. E porque não dizer almática!

Religião é uma manifestação cultural e deve ser abordada em debates públicos, mais ainda quando o assunto é de extrema importância por sua delicadeza na pauta social. De uma discussão desse feitio pode sair vida ou morte, dependendo do resultado! (novamente o aborto…). Mesmo assumindo o risco de ser taxado de “burro”, porque religião hoje em dia, na visão do “progresso”, “não se discute”, onde houver discussão entre pontos de vista religiosos diferentes ou antagônicos entre si, em todas as suas manifestações, a dialética ou o debate aberto deve sempre existir. Aclareando ainda mais: a religião ou quaisquer de suas manifestações ou temas que dela fazem parte é um ponto controvertido, o que por si só faz dela uma necessidade. E uma necessidade democrática, porque nosso país e nossa constituição, ao menos formalmente, diga-se de passagem, tem a democracia como regime de governo. As vozes de todos têm que ser ouvidas, não importando o que sai da boca de um pastor, de um padre ou de militantes religiosos.

Mas parece que esse não é o entendimento do politicamente correto, da “mais importante” pauta atual dos modernos, em todas as suas manifestações públicas (vide, exemplificativamente, reciclagem de lixo, defesa das árvores e dos bichos e aquecimento global), incluindo as instituições públicas dos poderes instituídos, como o Judiciário. Tais instituições ou pessoas assumem, acovardadamente ou não, postura de antirreligiosos ou arreligiosos, como se tais celeumas não devessem entrar em cena por mesquinhas ou de pequena importância para a solução dos maiores e mais “dignos” dos problemas humanos, comparativamente com eles. Pautas globais do politicamente correto e, consequentemente, do engano, do vil, mas pregadas como tábua de salvação humanitária, só porque entraram na moda ou porque vêm de cima, desmistificam o sagrado e a natureza humana e assumem o papel de uma verdadeira “religião” nos dias atuais. Mais verdadeiramente, assumem a saga salvadora do deserto em que se encontra o indivíduo sem Deus, sem o divino para dar luz aos seus pequenos ou grandes problemas. O pior é que, não institucionalizada religiosamente, a civilização do divino toma contornos de verdadeira seita.

É impactante o que é noticiado que acontece na Coréia do Norte, um país ainda e infelizmente comunista por excelência, um regime opressor que tem como fundamento eliminar a liberdade das pessoas – e, em caso de relutância, até mesmo a vida – que se negam a cumprir os mandos e desmandos do tirano. Todos os mentores e líderes comunistas se acham os heróis e assumem o poder sem democracia ou com uma que, a bem da verdade, foi camuflada e nada reflete em termos de vontade do povo.

Isso não é nenhuma novidade em países comunistas, mas vale a pena lembrar.

Fatos e mais fatos são divulgados diariamente e que demonstram que o embate religioso de temas caros para a sociedade está sendo desfigurado para dar lugar a soluções baratas e vis, substituindo um campo transcendental por outro da cultura e da política, viável sob o ponto de vista de um Estado que se quer dessacralizado desde a sua separação com a igreja. O Estado tem que assumir a sua função política e nada mais.

Virou notícia na internet que o governante da Coréia do Norte trocou o natal, ou nascimento de Jesus, por outra comemoração: o nascimento da sua vó. Eis o título: Ditador da Coreia do Norte proibiu o Natal e mandou celebrar o nascimento da sua avó. Nada contra a vó do referido ditador, uma heroína comunista digna de prêmio com certeza mais até do que Jesus… o qual pregava o amor entre as pessoas e não o ódio, não chegou a matar se quer uma barata e sua pregação era de livre arbítrio, ou seja, liberdade com responsabilidade. Mas Jesus não agradou a todos e isso já em si serve de lição sobre a natureza humana, que ele insistia em demonstrar. Mas é isso, nada de novo. Ou seja, os heróis dessa nova geração de mimados de hoje já não são mais pessoas comuns que pregam o consenso. Ao contrário, a luta ideológica é o standart político para inteligentinhos. Para essa nova geração que se quer se esforça para arrumar o quarto, mas continua pixando muros com seus salvem as baleias e faz questão de separar o lixo reciclável do orgânico, os heróis são os mentores de regimes opressores – e até mortais –  que chegam a retirar a liberdade do indivíduo, sob o manto de uma mesma utopia milagrosa de um céu aqui mesmo na terra. Chesterton chega a afirmar em ciência da decapitação intelectual[3] ao dizer que “é sempre fácil deixar a vida mudar a sua cabeça; o difícil é manter a sua própria cabeça”, querendo se referir a atrofia da visão de homem, de mundo, da ciência e da política pode chegar às raias de uma violência inimaginável.

Existe o direito de ter religião e de cultura sacra e isso não pode ser retirado do indivíduo. Voltando ao julgamento do aborto pelo STF (aquele que permitiu interrupção de gravidez até o terceiro mês), mesmo que ministros do STF assumam de vez em quando uma postura sacerdotal, funcionando como líderes sacros nessa moda de eliminar de vez o sagrado das mentes humanas e da civilização, transformando a religião em algo civil (naquele julgamento, onde argumento religioso foi praticamente abominado da discussão jurídica, não teve a mesma importância ou foi apenas citado an passam), é certo que o sagrado e a natureza ainda existem em nossos corações e mentes, e assim sempre será até o grande dia!

A revolução é cultural. Fazer a inversão de valores tão pretensiosamente querida por Antônio Gramsci – parafraseando o Prof. Olavo de Carvalho, alguém que já está morto há mais de meio século mas que, desde o reino das sombras, dirige em segredo os acontecimentos nesta parte do mundo – é uma das consequências imediatas e destrutivas de seu legado. A revolução é cultural. Mas porque não dizer almática? Para os revolucionários, é a fraqueza e a mudança no espírito, parte mais superficial da decisão, e não na alma, na vontade ou espontaneidade mesmo, o que importa, mas as consequências do apagão psicológico ou reflexivo vão mais profundamente, atingindo a alma, que é patrimônio de Deus. O materialismo nega a existência de alma, pois somos apenas máquinas sem uma cabeça ou um coração. Mas isso é fraude, porque essas doutrinas ideológicas querem, a bem da verdade, é nossa alma. Simplesmente porque, penetrando no mais profundo das emoções ou na vontade humana, no seu livre arbítrio, criação divina e indevidamente apropriada por estelionatários, querem negar O homem eterno de G. K. Chesterton, o microcosmo, a medida de todas as coisas ou a imagem de Deus, ou o virtuoso de Aristoteles.

A falácia se repete em toda a história, havendo uma negação do divino por seu mais comezinho, audacioso e fraudulento substituto para todos os males da humanidade: formando uma religião civil. Este tipo de pseudoreligião ou de negação dela aparece trasvestida nas suas mais variadas formas. Ora ela aparece como ciência, ora de cultura simplesmente, e, no mais das vezes, e o que é pior ainda, por meio da política. O desejo de se ter uma pseudoreligião é, nas palavras de Diogo Chiuso, com o fim de parasitar o cristianismo através de sua imitação grotesca, com exaltação do Estado ainda na busca de heróis humanitários e reconhecendo-o como um ser transcendental, dono da razão, da ciência e do espírito humano.[4] Essa insistência do Estado em não querer se secularizar de uma vez por todas, apesar do Decreto n. 119-A, de 1890, da época do advento de nossa república, aparece sob a forma de regularização das atividades civis de crença e de credo sob uma roupagem diversa, camuflada, escondida pela ciência, pela razão ou pela política. Em termos mundiais, dentro da história do Estado Moderno, Thomes Hobbes justificou seu intento absolutista com base no Leviatã, o qual, grosso modo, negava a natureza humana com algo estável e permanente, as ideias e as criações não são fruto divino e sim do próprio ser humano, o direito deixa de ser fundamentado na natureza e passa a ser produto do Estado ou algo posto por este, não existindo moralidade fora da lei positiva.

Exemplo disso, no Brasil, um dos mais eloquentes porque ainda bastante recente, foi o julgamento por meio de um mísero habeas corpus (manejo jurídico dos mais singelos e que trata apenas de liberdade de ir e vir, ou seja, sem maiores delongas jurídicas) e sem ter discutido a fundo a natureza daquele ser que estava no ventre, quando se decidiu poder se interromper a gravidez se até o seu terceiro mês. Ora, políticas públicas decidiram a questão e os ministros do STF assumiram a condição de sacerdotes de tal confissão religiosa ainda a encoberto.

Essa simbiose entre religião e Estado ou tratamento cientificizado do poder divino parece soar como se fossem meros dois lados de uma mesma moeda. O encarar civilmente problemas filosóficos do início e da existência humana, por exemplo, que a religião não aceita porque próprio de seu escopo, entra em xeque com o seu opositor científico de sanação de celeuma que entende como de índole racional. Mas eles não são dois lados de uma mesma moeda.

Ralf Dahrendorf, em Reflexões sobre a revolução na Europa, escreve com prudência: “Não há maior perigo para a liberdade humana do que o dogma político, o monopólio de um único grupo, de uma ideologia, de um sistema (…) Se quisermos seguir em frente, melhorar a nós mesmos e às condições em que homens e mulheres vivem neste planeta, temos que aceitar a perspectiva desorganizadora, antagonista, incômoda, mas orgulhosa e estimulante de horizontes abertos”.[5] Para Francisco Razzo conclui que “o imaginário totalitário tem a pretensão de resolver o problema da estiagem espiritual na qual se encontra o homem em uma era secular. Os conceitos de Estado, História, Tradição, Vontade Geral, Luta de Classes, Coletivos, Mercado, Minorias etc. são todos concorrentes diretos, inclusive entre si, do abismo deixado por Deus. A imaginação totalitária preenche esse vazio (…)”.[6]

Num regime democrático como o nosso deve existir possibilidade de espaço e voz para discussão de toda e qualquer questão que seja apresentada ao Estado, caso contrário nos tornaremos os súditos de um novo Leviatã em terras brasileiras. Diante de um ativismo judicial escancaradamente enviesado pelo político,  estaremos sendo pegos de surpresa com julgamentos singelos de questões importantes no palco da vida social e cuja solução, desfigurada, será a mais superficializada possível.

Sobre o autor: Sergio Renato de Mello, defensor público do Estado de Santa Catarina.



[1]O preâmbulo de nossa Constituição Federal, muito embora ainda não tenha valor normativo, não carece de valor interpretativo para os artigos da Carta Política. Ele tem a seguinte redação, que invoca, já de início como texto constitucional, a “proteção de Deus”: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.”.

[2]“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”.

[3]Benjamin Wiker, 10 livros que todo conservador deve ler – mais quatro imperdíveis e um impostor; trad. por Mariza Cortazzio. São Paulo: Vide editorial, 2016, p. 55-56.

[4]Essa foi a sua nota na obra de Nelson Lehmann da Silva, A religião civil do estado moderno, 2ª ed. São Paulo: Vide Editorial, 2016, p. 7-8.

[5]Citando Charles Taylor, Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010, apud A imaginação totalitária: os perigos da política como esperança. 1ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2016, p. 98.

[6]Ob. cit. p. 98.

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