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Providência divina
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Quando alguém deveria estar em um local de acidente, mas por algum acaso qualquer se livra dele, a sensação de ser um predestinado e ter sido agraciado com uma mão divina salvadora é grande. Podemos pensar em alguém que estaria no lugar em que um terremoto destroçou a vida de centenas de pessoas, mas teve de voltar antes para casa por um motivo qualquer. Ou alguém que ia pegar um voo, mas na última hora teve outro compromisso, ou se atrasou no engarrafamento e perdeu o voo.

Ainda que compreensiva a sensação de que, por um motivo muito especial e divino, a pessoa sobreviveu ao que deveria ter sido seu destino trágico, tal postura de creditar a Deus o desejo pessoal de salvá-la sempre me pareceu um tanto cruel. Com os outros, que não tiveram a mesma sorte. Quer dizer, então, que era o desígnio divino acabar com aquelas vidas, pois não tinham mais “chamado” algum para realizar por aqui?

Falo, claro, do tom um tanto messiânico que Marina Silva adotou, ainda muito abalada pela perda do companheiro de chapa:

Durante o voo, com duração aproximada de três horas, Marina leu o salmo 23 da bíblia — que traz os dizeres “o Senhor é meu pastor, e nada me faltará” — e foi lacônica ao ser questionada sobre os rumos que serão tomados pelo PSB após a morte de Campos:

— Tenho senso de responsabilidade e compromisso com o que a perda de Eduardo nos impõe — disse, sem dar espaço para tratar das discussões com os socialistas.

Marina também comentou sobre o seu sentimento em relação ao acidente, e o fato de não ter embarcado naquele voo para seguir para Santos, como estava previsto:’

Penso que existe uma providência divina em relação a mim, ao Miguel, a Renata e ao Molina — disse ela, segurando forte na mão da repórter, sinalizando que não pretendia mais falar sobre o assunto.

Haveria uma providência divina contra o avanço do jovem e promissor candidato Eduardo Campos, então? Quem atribui à vontade de Deus ter sido salvo por “milagre” está também atribuindo ao desejo do mesmo Deus ter eliminado os demais, que não tiveram a mesma sorte na tragédia.

Muitos acreditam exatamente nisso, e têm todo o direito de fazê-lo. Mas sempre me pareceu algo até insensível para com os que morreram. Prefiro adotar a angustiante, ainda que mais realista noção de que “shit happens”, ou seja, o acaso existe.

No mais, como escreveu Merval Pereira hoje, o motivo de Marina não ter entrado naquele avião foi bem mais comezinho:

Marina já deu o seu tom, ao afirmar que foi a “providência divina” que a tirou do avião, e que tem “compromisso com a perda que Eduardo nos impõe”. Na verdade, a razão de não estar no avião fatídico é bem mais prosaica e humana: ela não queria encontrar o deputado Márcio França (PSB), candidato a vice do governador tucano Geraldo Alckmin (coligação a que ela se opunha em SP) e que esperava o grupo em Santos.

Mas sem dúvida esse ar místico que envolve a ex-senadora dará à campanha o tom de escolhida pelo destino para presidir o país. Se se confirmarem as informações preliminares, Marina ganha força política para comandar uma campanha que será em tudo diferente da de 2010. Ela terá a apoiá-la partido mais bem estruturado do que era o PV, mas em compensação não terá unidade partidária no comando da campanha.

Marina já adotava uma postura um tanto messiânica, de salvadora da Pátria, de quem conversa diretamente com Deus e segue seu “chamado” para mudar o país. Agora, estará mais convencida ainda de que tudo ocorreu exatamente como tinha de ocorrer, para que ela, boicotada pelo governo Dilma e o PT para não ter como disputar as eleições, o faça em condições especiais, com estrutura partidária maior, mais tempo de TV e a forte comoção popular que a trágica morte de Eduardo Campos causou.

Mas deixemos Deus fora disso. O estado é laico, e na democracia o que vale é a vontade dos eleitores mesmo. Crer em providência divina para colocar Marina como nossa presidente é um equívoco enorme. Afinal, se Deus fosse de fato brasileiro e estivesse tão interessado em nossas eleições, o PT jamais teria permanecido no poder por 12 longos e penosos anos!

Rodrigo Constantino

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