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Reflexões acerca dos acontecimentos na Turquia
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A Turquia pegou fogo nesses últimos dias com a tentativa fracassada de golpe militar, se foi isso mesmo o que aconteceu, e a dura resposta de Erdogan, cujo governo aproveitou a deixa para prender mais de 6 mil pessoas, inclusive muitos juízes que vinham representando um obstáculo ao seu avanço de poder. Alguns leitores pedem minhas opiniões sobre o assunto. Não confiam em nossa imprensa. O que dizer?

Em primeiro lugar, devemos constatar algo um tanto óbvio, mas frequentemente esquecido na era das redes sociais: ninguém pode ser “especialista de tudo”, uma contradição em termos. Quando acontecimentos dessa natureza pipocam na mídia, logo surgem os “especialistas”. No Facebook, automaticamente temos os experts em Turquia dando seus pitacos, tomando partido, analisando os fatos. Com incrível superficialidade.

Evitei comentar sobre o assunto até agora justamente porque não tenho muito a acrescentar. Entendo patavinas do que está em curso na Turquia, país que viveu vários golpes de estado nas últimas décadas. Não quis me precipitar, julgar os eventos de forma maniqueísta, escolher um lado ou outro, emitir uma opinião definitiva, até porque não a tenho. E é legítimo não tê-la! Eis minha primeira reflexão: cuidado com os “especialistas” que surgem da noite para o dia.

Mas algumas reflexões podemos tecer sobre o ocorrido. Em primeiro lugar, vale notar que a Turquia é o mais ocidentalizado dos países  dominados pelo Islã. Graças a um governante “mão de ferro”, Ataturk. Ou seja, a democracia nunca teve muito apreço pela região, e tampouco é certo que a escolha da maioria seria a melhor em países repletos de quem apoia a sharia, a lei islâmica. Ataturk foi cruel, mas o Irã é melhor?

O que se passa na Turquia é um balde de água fria e um alerta para os “especialistas” que celebraram, cedo demais, a tal Primavera Árabe. Cheguei a escrever um artigo sobre a perigosa ilusão da democracia islâmica. Se num dos países mais avançados e “normais” do mundo islâmico acontece isso, então fica claro como soa infantil o sonho de implantar rapidamente nesses lugares um regime similar ao que conhecemos nas democracias ocidentais.

E isso nos leva à outra reflexão importante: não é trivial chegar e preservar tais regimes relativamente estáveis e livres. É uma conquista que precisa ser bem compreendida, sob o risco de a perdermos caso contrário. Muitos tomam essas democracias como um dado garantido, e acabam cuspindo em seus pilares por falta de conhecimento do que as tornaram possíveis.

A liberdade individual presente no Ocidente não caiu do céu, não surgiu num vácuo de valores e crenças, e eis o que muitos simplesmente não entendem. Parecem crianças mimadas que fazem birra diante dos pais para ganhar mais e mais presentes, sem ter a mais vaga noção do que foi necessário para se obter aqueles recursos, com trabalho árduo. A civilização ocidental tem muitos inimigos internos, como se não bastassem os externos. Alguns agem de forma deliberada, por niilismo, outros por ignorância: são os inocentes úteis.

A própria União Europeia vem flertando há anos com a ideia de colocar a Turquia para dentro do seu “seleto” clube. Agora fica claro como essa seria uma decisão equivocada (e também fica mais fácil entender o Brexit). Muitos achavam que fazendo isso estariam atraindo o país mais ainda para o lado ocidental, mas na prática estariam enfraquecendo o Ocidente com misturas prejudiciais. É análogo ao Mercosul abrigar a Venezuela: não trouxe democracia para o país bolivariano, mas avacalhou de vez com a união aduaneira desses países.

Istambul já foi um ícone da civilização ocidental quando era Constantinopla. Hoje é um lugar dividido entre Ocidente e Islã. Os otomanos exerceram grande influência desde sua tomada em 1453. Mas a democracia liberal ainda não deu o ar de sua graça aos turcos. Trata-se de um regime dividido, instável, justamente por não ter os pilares adequados que garantem, por exemplo, a impressionante estabilidade democrática nos Estados Unidos e no Reino Unido. Sim, o Reino Unido que os “especialistas” querem ensinar a ser mais sábio em sua democracia…

A única certeza que podemos ter, em meio a tantas dúvidas, é que não se chega nesse patamar por decreto, da noite para o dia, sem os devidos valores sustentando todo o arcabouço democrático. Construir algo assim leva muito tempo e demanda certas coisas ausentes na Turquia hoje. Construir é muito trabalhoso e difícil. Destruir, por outro lado, é mais rápido e fácil. A mais relevante reflexão deve ser esta: ver os tristes acontecimentos turcos como um alerta para o próprio Ocidente.

Não devemos tomar como eterno e garantido o modelo de liberdade pois, como sabia Reagan, ele nunca está a mais de uma geração de ser perdido. Valorizar a liberdade e a democracia é algo que deve ser ensinado o tempo todo. Se relaxar, achando que estão garantidos, ou se fizer pior, que é atacar tais valores como ruins, obsoletos ou injustos, aí é questão de tempo até a barbárie vencer o império das leis.

Rodrigo Constantino

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