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Reflexões sobre o julgamento de Lula e a prisão em segunda instância
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Por Bernardo Santoro, publicado pelo Instituto Liberal

Nesta quarta, dia 04/04/2018, seremos todos testemunhas de um dos mais históricos julgamentos do Supremo Tribunal Federal, quando os Ministros decidirão se entendem procedente ou não o Habeas Corpus impetrado pelo ex-Presidente Lula.

Vamos contextualizar o caso para que, posteriormente, possamos fazer algumas considerações de cunho pessoal.

O ex-presidente Lula fora acusado e posteriormente condenado, tanto em primeira quanto em segunda instância, pelos crimes de lavagem de dinheiro e corrupção passiva, em virtude de um esquema de desvios de recursos da Petrobras, conforme investigação da Operação Lava Jato da Polícia Federal.

Em virtude de possibilidade de recursos para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal, o ex-presidente Lula entrou com um Habeas Corpus Preventivo argumentando que, embora condenado por tribunal em segunda instância, como não haveria ainda o trânsito em julgado do processo, a sua eventual prisão imediata seria inconstitucional.

Estaria o ex-presidente correto em seu pedido?

A QUESTÃO CONSTITUCIONAL: ENTRE A CULPA E A LIBERDADE

A questão constitucional evocada repousa basicamente sobre dois incisos do artigo quinto da Constituição, que trata sobre direitos individuais, sendo, portanto, cláusula pétrea da nossa magna carta:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

A Constituição, analisada no seu conjunto, é clara no sentido de que a liberdade é o estado natural do indivíduo que esteja sob as leis brasileiras, e que a perda dessa liberdade deveria, pelo menos a princípio, ser circunstancial à culpa em um crime cuja pena cominada seja a de restrição de liberdade.

O inciso LVII, inclusive, é uma inovação da Constituição de 1988, em termos brasileiros. Em nenhuma outra das nossas 6 Constituições prévias (ou 7, para quem considera a emenda de 1969 como outra Constituição) está incluso um dispositivo que disponha, expressamente, que um acusado só seria considerado culpado após o trânsito em julgado de uma decisão, ou seja, quando não houvesse mais qualquer possibilidade de recurso à decisão condenatória. É, portanto, um dispositivo alheio à nossa tradição legal.

Cumpre observar também, por outro lado, que a Constituição faz uma distinção entre culpabilidade e estado de liberdade. A privação de liberdade não está diretamente ligada à necessidade de culpabilidade, mas sim apenas ao respeito ao devido processo legal, ou seja, ao respeito aos ritos legais e garantias individuais (aspecto formal do devido processo legal) e à razoabilidade na sua aplicabilidade (aspecto material do devido processo legal).

Caso a privação de liberdade só fosse possível após o trânsito em julgado e declaração definitiva de culpabilidade de um determinado acusado, até mesmo as prisões em flagrante delito seriam inconstitucionais, o que não faz nenhum sentido lógico. Que dirá então as prisões provisórias.

A regra geral constitucional para a privação de liberdade é, repisando e destacando, o respeito ao devido processo legal, e não o trânsito em julgado da decisão definitiva acerca da culpabilidade de um acusado.

Mas estaria a culpabilidade definitiva dentro do escopo do devido processo legal, sendo então, ainda que indiretamente, parâmetro da privação de liberdade?

SOBRE PRISÕES PROCESSUAIS E PENAIS

As prisões podem ser divididas, de acordo com a doutrina, em dois tipos: as penais e as processuais.

A prisão penal é aquela que ocorre com o trânsito em julgado da condenação penal. A prisão processual é aquela que ocorre antes desse trânsito, mas sempre, como o próprio nome diz, respeitando o… devido processo legal!

As prisões processuais são de vários tipos: em flagrante (no cometimento do crime ou logo após este), temporária (de 5 a 30 dias, para preservar provas de serem destruídas pelo acusado) e preventiva (quando, por um juízo de razoabilidade, se chega à conclusão que há indícios de autoria e perigo na demora da prisão) são as mais famosas.

Em reforma de 2011, a chamada “prisão por decisão condenatória recorrível” (art. 393 do CPP) foi revogada, ou seja, deixou de ser uma prisão automática. Ou seja, não há, nesse momento, uma regra específica no CPP que obrigue à prisão de um acusado após a sua condenação, seja em primeira ou segunda instância.

Nessa mesma reforma, a nova redação do art. 283 explicitou essa questão, afirmando que somente em caráter preventivo, temporário ou em flagrante pode haver prisão provisória, não mais sendo regra a execução obrigatória da prisão após a condenação em primeira ou segunda instância.

Dentro do espírito dessa reforma, a regra legal passou a ser a não prender mais o acusado antes do trânsito em julgado da decisão, salvo se o juiz ou a turma de desembargadores entender caber prisão preventiva, mas não é uma decorrência automática da decisão condenatória.

Em suma, pela atual lei processual penal, pode ocorrer a prisão após a condenação em segunda instância, ou mesmo antes, desde que satisfeitos os elementos do perigo na demora e uma culpabilidade indiciária forte, o que é claro no caso de condenações em segunda instância, mas não é a regra.

QUESTÕES DE FATO E DE DIREITO

Não é aleatória a escolha dos movimentos mais conservadores em torno da prisão preferencial após a segunda instância. Isso acontece porque em sede de vara criminal (primeira instância com um juiz) e turma criminal (segunda instância com vários desembargadores) ocorre a discussão e julgamento tanto de questões de fato quanto de direito.

Questões de fato são aquelas referentes à discussão sobre os atos ocorridos no entorno da ação criminosa. É aqui que são produzidas e avaliadas as provas para se chegar à conclusão se determinados atos existiram ou não.

Já as questões de direito se referem à discussão se os atos previamente discutidos nas questões de fato devem ser considerados como ações criminosas ou não, ou seja, se não estão de acordo com a legislação penal e constitucional.

As cortes superiores, tanto o STJ quanto o STF, só podem discutir questões de direito, e não mais questões de fato, que se precluem. Portanto, algum nível de definitividade da decisão já ocorre na segunda instância, legitimando o argumento de quem defende um grau de certeza mínimo acerca de um crime.

DEVIDO PROCESSO LEGAL SUBSTANCIAL, DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO E CULPABILIDADE PLENA

Como dito anteriormente, o devido processo legal não se trata apenas da exigência de serem cumpridos todos os ritos e atos processuais de acordo com o texto, que seria seu aspecto formal, ou de respeito à forma, mas também possui um aspecto substancial, de direito material, qual seja, as decisões e seus efeitos devem possuir um critério mínimo de razoabilidade em todos os seus aspectos.

Nesse sentido, embora a culpabilidade plena e irrevogável, que só é obtida após o trânsito em julgado definitivo do processo penal com o fim das possibilidades de apresentação de recursos, não seja um pressuposto direto e obrigatório para a privação de liberdade, deve sim ser levado em consideração no momento da prisão, seja em primeira, segunda ou superior instância.

Evidentemente, quando se esgota a possibilidade de recursos para matérias de fato e só resta a discussão de questões de direito, e mesmo assim já havendo se passado a discussão de direito em duas instâncias de poder, fica clara a concretude da POSSIBILIDADE de prisão preventiva em segunda instância para a maioria absoluta dos casos, ainda que esta não seja uma OBRIGATORIEDADE para juízes ou desembargadores.

Há de se destacar ainda que o duplo grau de jurisdição, embora não seja um princípio processual expresso na Constituição, não deixa de ser um princípio geral de direito. Em todos os sistemas jurídicos do mundo, há um consenso que uma decisão única pode gerar insegurança jurídica e injustiça, sendo o duplo grau de discussão um objetivo ideal. No entanto, esse mesmo consenso entende, como princípio geral de direito, que ir além de dois graus de jurisdição pode se gerar, para além do reforço da segurança jurídica, um princípio de criação de maior injustiça pelo retardo da decisão. Não à toa, o princípio geral de direito é o de duplo grau de jurisdição, não o de triplo ou quádruplo.

Em suma, a prisão em segunda instância não é obrigatória, mas não é proibida, e a sua inobservância pode gerar uma injustiça cujos efeitos deletérios superam, em muito, os efeitos benéficos que um triplo grau de jurisdição dá à segurança jurídica.

A POSTURA DO STF

Desde a promulgação da Constituição de 88, o STF evitou se debruçar sobre o tema, sempre com decisões esparsas, às vezes entendendo que era necessário o trânsito em julgado para cumprimento da pena, às vezes entendendo que não.

Fato é que, até recentemente, o objetivo número um de todo e qualquer advogado criminalista era buscar procrastinar o trânsito em julgado de uma decisão criminal até obter a prescrição do crime pelo qual seu cliente era acusado.

Isso porque após a segunda instância, em virtude do excesso de recursos e dos seus escopos, o trâmite desses processos nos tribunais superiores é de tal forma lento e burocratizado, que pode levar até uma década para julgamento de recursos nessas cortes, tornando na prática inviável um entendimento de que somente com o trânsito em julgado poderia haver a execução da pena.

Em 2009, o colegiado do STF entendeu, por maioria, que somente após o trânsito em julgado é que um acusado deveria passar a cumprir pena, o que inclusive levou à já citada reforma processual penal de 2011, onde os congressistas decidiram revogar o artigo que exigia dos juízes e desembargadores a prisão imediata dos condenados em primeira ou segunda instância.

Recentemente, em decisão liminar em ADIN sobre o já aludido art. 283 do CPP, o pleno do STF decidiu, liminarmente, ser possível a execução provisória da pena após a decisão em segunda instância, ainda que por apertada decisão de 6×5. Desde esta decisão, no final de 2016, os tribunais se sentiram livres para executar tais decisões colegiadas preventivamente.

O CASO LULA E O STF: CONCLUSÕES PESSOAIS

Conforme relatado ao longo desse texto não acadêmico, apresentamos alguns pontos que resumimos aqui:
(i) a culpabilidade plena decorrente do trânsito em julgado da decisão penal não é pressuposto da privação de liberdade, mas é um elemento que deve ser considerado em análise de razoabilidade em virtude do devido processo legal substantivo;
(ii) este inciso da Constituição é uma novidade de 1988 que não deveria ter sido aprovada, mas foi;
(iii) o melhor entendimento hoje é que a prisão em segunda instância não é obrigatória para os tribunais, mas também não é proibida, e se por critérios de razoabilidade ela é aplicada, não cabe uma proibição à sua execução;
(iv) a prisão após a segunda instância tende a ser razoável tanto por critérios de segurança jurídica quanto por critérios de justiça, embora o ideal fosse que o processo após a segunda instância fosse desburocratizado para que acusados só fossem presos após o trânsito em julgado do processo;
(iv) que o atual entendimento do STF, nesse sentido apresentado, é razoável.

O HC de Lula tem como base uma interpretação da lei que vai contra o que foi decidido muito recentemente pelo STF, de forma a dar a sensação, para a maioria dos brasileiros, que eventual concessão de salvo-conduto para o ex-presidente seria um casuísmo intolerável e uma quebra de paradigma, deixando todas as instituições públicas e políticas do Brasil em xeque.

Essa sensação se agrava quando se pensa que (i) oito dos onze ministros do STF foram indicados por petistas; (ii) o HC de Lula passou a frente de muitos outros HCs de pessoas presas a muito mais tempo; (iii) há mais de um ano todo e qualquer brasileiro que esteja na mesma posição processual do ex-presidente encontra-se preso; (iv) a liminar concedida ao ex-Presidente na semana passada, onde a corte cita que um indivíduo não pode ser vitimado pelo atraso do STF em julgá-lo, não encontra paralelo na nossa história jurisprudencial, motivo pelo qual muitos presos estão entrando com recursos com base no que se passou a chamar de “princípio Lula”; (v) a decisão da prisão em segunda instância é muito recente e não houve mudança na corte para que se pudesse justificar uma mudança jurisprudencial tão radical.

Se a justiça decaiu a tal ponto que somente a política já ser suficiente para um homem ter privilégios sobre todos os demais brasileiros, é sinal de que tudo no Brasil precisa ser repensado. A concessão do HC a Lula, caso ocorra, será a confirmação de que no Brasil não é a lei que se respeita, mas sim a quantidade de amigos que se tem em postos-chave da República.

E uma República assim nunca perdura por muito tempo.

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