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Seitas fechadas: a submissão intelectual em grupos coletivistas
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O socialista Francisco Bosco chamou os religiosos monoteístas de dogmáticos, de membros de uma seita fechada em sua coluna de hoje, que já rebati aqui. Curiosamente, ele não acha que os próprios socialistas fazem parte de uma seita fechada, e muito mais dogmática.

A postura de “nós contra eles”, de “Fla x Flu”, está bem mais presente na esquerda do que na direita, que costuma ser mais fragmentada e individualista. O politicamente correto, que Bosco defende em seu texto, justificando os dois pesos e duas medidas na censura ao humor, é uma bandeira típica da esquerda, que uniformiza o mundo e abomina dissidências.

Gostaria de recomendar a leitura do excelente livro Mente Cativa, uma coletânea de ensaios de Czeslaw Milosz, poeta polonês, sobre a submissão dos escritores e intelectuais no regime comunista.  Abaixo, a resenha que escrevi quando li o livro, alguns anos atrás.

Seitas fechadas

“A mente é como um para-queda: ela só é boa quando está aberta”. (Richard Driehaus)

Uma das posturas mais comuns entre os homens é a tendência de separar os indivíduos em dois grupos distintos, de forma bastante maniqueísta. Trata-se de um típico traço tribal, que encara o mundo como uma batalha entre clãs, o antigo “nós contra eles”. De um lado ficam os puros, os que enxergaram a Verdade, os que lutam pelo Bem, enquanto do outro lado estão todos os inimigos destes fins nobres, os cegos, os infiéis, os hereges. As seitas religiosas são exemplos claros disto. As ideologias que partem para sistemas fechados também.

Em Mente Cativa, Czeslaw Milosz faz um profundo relato da destruição da mente independente sob o comunismo, que o autor viveu na pele na Polônia. Para ele, o partido comunista aprendeu com a Igreja Católica a sábia lição de que pessoas que freqüentam um “clube” se submetem a um ritmo coletivo e, assim, “começam a sentir que é absurdo pensar diferentemente do coletivo”. A fé nas crenças do grupo seria mais uma questão de sugestão coletiva do que de convicção individual. Eis o que Milosz relata sobre o assunto:

“O coletivo é composto de unidades que duvidam, mas como esses indivíduos pronunciam as frases e cantam as canções ritualísticas, criam uma aura coletiva à qual eles, por sua vez, se rendem. Apesar de seu apelo aparente à razão, a atividade do ‘clube’ surge sob o titulo de mágica coletiva. O racionalismo da doutrina funde-se à feitiçaria e ambos se fortalecem. A discussão livre é, obviamente, eliminada. Se o que a doutrina proclama é tão verdadeiro quanto o fato de dois vezes dois ser igual a quatro, tolerar a opinião de que duas vezes dois é igual a cinco seria indecente”.  

O que parece comum a estas seitas é uma sensação de superioridade moral que desperta em seus membros. Somente eles compreenderam o sentido da vida, conhecem o destino da história, e encontraram as respostas para os complexos temas que afligem os homens desde sempre. Somente eles lutam pela liberdade! Cria-se um sentimento de que tudo é compreensível e explicável. Milosz explica: “É como um sistema de pontes construídas sobre precipícios. É proibido olhar para baixo, mas isso, oh, meus Deus, não muda o fato de que existem”.

Além desta típica arrogância, as seitas fechadas costumam apelar para um extremo simplismo também: “Séculos de história humana, com suas milhares e milhares de questões minuciosas, são reduzidos a algumas, a maior parte termos generalizados. Sem dúvida, o indivíduo aproxima-se mais da verdade ao ver a história como a expressão da luta de classes em vez de uma série de questões privadas entre reis e nobres. Contudo, precisamente porque tal análise da história se aproxima mais da verdade, ela é mais perigosa. Dá a ilusão do conhecimento pleno; fornece respostas a todas as perguntas, perguntas que meramente andavam em círculos repetindo poucas fórmulas”.

Outro fator presente será o fanatismo. Qualquer desvio em algumas premissas pode alterar substancialmente os resultados, criando-se uma nova seita. Como diz Milosz: “O inimigo, de forma potencial, sempre estará presente; o único aliado será o homem que aceitar a doutrina 100%. Se ele aceitá-la apenas 99%, necessariamente deverá ser considerado um inimigo, pois do 1% remanescente pode surgir uma nova Igreja”. Isso explica porque Stalin criou a brilhante tática de rotular todas as idéias inconvenientes aos seus objetivos de “fascismo”. Socialistas alinhados a Moscou eram socialistas, enquanto qualquer outro grupo desleal era chamado de “fascista”. Basta lembrar que Leon Trotsky foi marcado para morrer como inimigo do povo, supostamente por organizar um “golpe fascista”.

No Brasil, muitos seguidores da esquerda radical apelam para a mesma tática. Todo aquele que não aceita integralmente as crenças do grupo é chamado de “neoliberal” ou mesmo “fascista”, como se ambas as doutrinas tão contraditórias fossem, no fundo, sinônimo. Basta não aderir a alguns pontos do programa para ser um “deles”. É desta forma que os esquerdistas mais radicais do PT chamam os esquerdistas mais civilizados do PSDB de “neoliberais”, ignorando que o PSDB está longe de ser um partido realmente liberal. Como disse Irving Babbitt, “o sofista e o demagogo florescem numa atmosfera de definições vagas e imprecisas”.  

Infelizmente, isto não é monopólio da esquerda. Alguns libertários mais radicais, como certos anarco-capitalistas, gostam de abusar da mesma tática. Para estes, somente seu “clube” defende de verdade a liberdade, enquanto todos os demais são chamados de “socialistas” ou “fascistas”. Se alguém defende a proibição de fumar em locais públicos, por exemplo, é logo tachado de “fascista” por estes libertários “puros”. Mas ao fazer isso, eles estão tornando o termo desprovido de sentido real. Juntar no mesmo saco os seguidores de Mussolini e alguém que simplesmente defende a proibição do cigarro em locais públicos é desprezar o horror fascista. Da mesma forma, chamar tanto Marx como Hayek de “socialistas” é acabar com qualquer valor que tal conceito possa ter.

Rótulos e conceitos são perigosos. Eles servem para simplificar e facilitar a nossa compreensão, mas como toda simplificação, apresentam riscos de deturpar mais do que clarear os debates. Para um conceito fazer sentido, ele deve ser capaz de unir as semelhanças relevantes, mas também separar as diferenças importantes. Chamar qualquer um que não seja um anarquista de “socialista” é apenas confundir a mente das pessoas. As inúmeras diferenças das ideologias não cabem nesta divisão simplista e maniqueísta, típica de uma seita fechada.

Por isso existem socialistas, comunistas, social-democratas, conservadores, liberais, libertários, anarquistas coletivistas, anarquistas individualistas, etc. E mesmo assim, tais rótulos são bastante imprecisos e limitados, pois poderiam ser desmembrados e ficar mais específicos ainda, de acordo com importantes diferenças dentro de cada grupo. A complexidade do mundo real não se encaixa nas definições rudimentares destas seitas. É preciso abrir a mente como se ela fosse um para-queda. Afinal, o sistema fechado pode estar construído sobre o precipício, e a qualquer momento alguém pode cair.  

Rodrigo Constantino

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