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Sem entusiasmo se vence eleição, por acaso?
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Sou admirador de João Pereira Coutinho. Aprecio tanto seu estilo como sua visão de mundo, um conservadorismo refinado, prudente, liberal. Temos nossas divergências, claro, o que é natural. Uma delas diz respeito ao presidente Trump. Cheguei a gravar um podcast durante a eleição americana afirmando que seus eleitores mereciam mais respeito.

Coutinho não está sozinho entre os conservadores que abominam Trump. Seu estilo bufão, seu caráter questionável, seus tuítes e falta de decoro em nada ajudam. Mas o governo Trump tem sido uma agradável surpresa para esses conservadores, mesmo os daquele movimento “Never Trump”.

O republicano, afinal, apontou um constitucionalista para a Suprema Corte, reduziu impostos e burocracia, cortou verba de ONGs abortistas e ambientalistas, foi o primeiro presidente a discursar na “marcha pela vida”, fez um brilhante discurso na Polônia em defesa dos valores ocidentais etc.

Ainda assim, “algo” continua a incomodar, e esse “algo” é justamente o estilo fanfarrão, a retórica quase populista, que alimenta um nacionalismo perigoso pela ótica dos conservadores de boa estirpe (linhagem britânica).

O patriotismo, sentimento decente e importante para o conservadorismo, pode se transformar em nacionalismo coletivista, em xenofobia contra os “outros”, os “imigrantes”, os “mexicanos”, os “muçulmanos”, os que vêm daqueles “países de merda”. Trump anda nessa corda bamba, equilibrando-se.

Em sua coluna de hoje, Coutinho falou do coletivismo de esquerda e também de direita, lembrando justamente que ambos os lados possuem sua cota de “entusiasmo” tribal. Ele usa o conceito filosófico trazido por David Hume, em que o “entusiasta” ignora a razão ou a moral, e se entrega nos braços do orgulho e da ignorância. É isso que torna o “entusiasmo” tão perigoso: essa combinação de vaidade e ignorância.

Coutinho cita a “entrevista” de Jordan Peterson a Cathy Newman, que viralizou na internet (e esse blog foi um dos primeiros a divulgá-la, com orgulho), em que o pensador conservador massacra com elegância e estilo a entrevistadora feminista, que só enxerga “política identitária” e “ideologia de gênero” pela frente. Mas Coutinho diz que faltou Peterson incluir a direita nesse grupo tribal:

Basta escutar a “direita radical” e as suas proclamações contra “os estrangeiros” –e em defesa dos “nacionais”, claro– para compreender a grande ironia do debate político atual: esquerda e direita estão contaminadas pelo vírus do pensamento de grupo. Pelo meio, perde-se a importância (e a primazia) do indivíduo –essa ficção pequeno-burguesa, como diziam nazistas ou comunistas, e que as mentes autoritárias sempre tentaram calar ou destruir.

Não discordo totalmente, ainda que considere necessário contextualizar a reação à direita, entender o fenômeno melhor, lembrar que vivemos na era do politicamente correto, da hegemonia “progressista”, das políticas identitárias que têm tomado conta das universidades no mundo todo, da revolução cultural em curso, do globalismo. Nesse cenário, considero mais compreensível a reação nacionalista, ainda que julgue os alertas de pessoas como o Coutinho importantes.

Tenho um texto antigo, que faz parte de Uma luz na escuridão, justamente com base no conceito de “entusiasmo” e de “superstição” de David Hume, as duas “religiões” perigosas segundo o filósofo escocês. O mundo estaria basicamente dividido entre esses supersticiosos e esses fanáticos entusiastas. Eis o que escrevi na época:

Para Hume, a superstição e o entusiasmo são “formas corrompidas da verdadeira religião”. Os homens receiam uma infinidade de males desconhecidos, e sem objetos reais de terror, inventam objetos imaginários, “aos quais atribui um poder e uma maldade sem limites”. Sendo tais inimigos invisíveis e desconhecidos, os métodos empregados para combatê-los são também incompreensíveis, constituindo em “rituais, proibições, mortificações, sacrifícios, oferendas e outras práticas”. Por mais absurdas e frívolas que possam parecer, tendem a ser sugeridas pela “loucura ou pela patifaria que se aproveita de uma credulidade cega e aterrorizada”. Em resumo, Hume diz: “A fraqueza, o medo e a melancolia são, portanto, ao lado da ignorância, as verdadeiras fontes da superstição”.

Do outro lado, existem aqueles que se deixam levar pela imaginação grandiosa, pelas fantasias que melhor correspondem a seu gosto e disposição momentâneos. Eles irão rejeitar a razão humana como guia, e o fanático irá se entregar cegamente às supostas inspirações do espírito. São seres tomados por uma confiança e presunção acima do normal. David Hume conclui: “A esperança, o orgulho, a presunção, uma imaginação cálida, ao lado da ignorância, são, portanto, as verdadeiras fontes do entusiasmo”.

Grosso modo, assim estaria dividido o mundo pela ótica de Hume: de um lado, supersticiosos, e do outro, entusiastas fanáticos. Ambos igualmente ignorantes, que desprezam a razão humana. Sendo a superstição fundada no medo e na depressão do espírito, ela faz com que o homem recorra naturalmente a qualquer outra pessoa, considerada mais capaz que ele. O supersticioso confia a esta pessoa suas devoções. Ele necessita de algum intermediário entre seu medo e sua crença, nunca confiando em si mesmo. Hume explica através disso a origem da figura dos padres, e afirma de maneira direta que “quanto mais forte for a mistura de superstição, mais alta será a autoridade do sacerdócio”.

[…]

De forma simplificada, a superstição seria uma grande inimiga da liberdade civil, pois torna os homens mansos e submissos, mais predispostos à escravidão. O antídoto seria um desenvolvido autocontrole, uma grande moderação em todas as paixões, um temperamento equilibrado, justamente como o próprio David Hume era descrito por amigos próximos. Ele mesmo afirmara que “para ser feliz, a paixão não deve ser nem demasiado violenta nem demasiado omissa”. No primeiro caso, o espírito vive em constante agitação; no segundo, ele mergulha numa desagradável letargia. Hume diz: “Para ser feliz, a paixão deve ser alegre e jovial, não sombria e melancólica”.

Para finalizar, as palavras do filósofo uma vez mais: “Quando o temperamento dos homens é suavizado e o seu conhecimento aprimorado, essa humanidade parece ainda mais conspícua e é a principal característica que distingue uma época civilizada de períodos de barbárie e ignorância”.

Não há como discordar muito. E o próprio Coutinho atesta isso: sua postura demonstra um caráter suavizado, um conhecimento aprimorado, alguém civilizado que combate a barbárie e a ignorância da esquerda à direita. Observo tudo isso com respeito e admiração, mas não deixo de ter a seguinte dúvida: quantas pessoas conseguem adquirir tal espírito cultivado e refinado, sábio até?

E, diante dessa questão incômoda, que lembra como Hume ou Coutinho serão sempre minoria e exceção, como essa conduta é elitista, surge a pergunta que dá título ao texto: sem entusiasmo se vence eleição, por acaso? Sem cativar as massas, sem empolgar a militância, sem seduzir com as emoções, sem falar ao “macaco” em nós, dá para vencer, só usando argumentos racionais e propostas prudentes?

“Como dizia David Hume, onde existe vaidade e ignorância, existe entusiasmo. E a alma dos homens sempre foi fraca: entre a solidão do individualismo e a pertença aos entusiasmos da tribo, o macaco eterno não hesita”, conclui Coutinho. E como fazer para vencer eleições, para derrotar os piores, os mais populistas, tribais e autoritários da esquerda? Só com o individualismo elegante e racional?

Mitt Romney é uma pessoa que aparenta ser melhor do que Trump em tudo, tem postura mais refinada, é extremamente inteligente, defende valores conservadores com maior consistência e tudo mais. Só tem um detalhe: perdeu para Obama, o populista. Assim como vários outros republicanos, que foram derrotados por Trump nas primárias. Trump soube explorar esse lado mais emotivo, e por isso venceu.

No Brasil, vejo muitos liberais flertando com opções mais apáticas, racionais, com discursos que, segundo um amigo meu, mais parecem a leitura de bula de remédio. Isso chega a 2% dos votos? Dá para derrotar um Lula ou uma Marina, figuras da maior periculosidade, apenas com esse racionalismo intelectual? Dá para superar a esquerda sem a empolgação dos entusiastas?

Coutinho não é um líder de torcida, um militante partidário ou um cabo eleitoral. Como um formador de opinião, ele está em seu papel ao alertar para os riscos desse entusiasmo à direita, sem dúvida. Mas, no frigir dos ovos, o que importa para o resultado eleitoral é aquilo que pensadores conservadores e também liberais costumam olhar com desprezo, desdém: as emoções populares, manipuladas de certa forma pelas lideranças políticas.

Não é o ideal. A política está longe de ser um jogo limpinho, puro. Mas se temos algum interesse em vencer, em derrotar os piores ao menos, então é preciso aceitar as coisas como elas são, não como gostaríamos que fossem. Esse, aliás, é um princípio bem conservador: o realismo. Eu também achava Mitt Romney melhor do que Trump.

Mas eis o ponto: eu acho Trump bem menos pior do que Hillary Clinton, e foi Trump quem derrotou a “crooked Hillary”. Foi ele que teve condições de vencê-la, por ter esse estilo, por saber jogar o jogo, explorar as emoções dos eleitores, desafiar o politicamente correto, mobilizar multidões em prol de causas comuns, entusiasmar o povo: Make America Great Again!

Coutinho não gosta de Trump? Pois eu não suporto a esquerda democrata, cada vez mais radical e perigosa. E se, para derrotá-la, era preciso alguém com o perfil de Trump, whatever, que seja! Se não tem tu, vai tu mesmo, como diz o ditado. No planalto segue o jogo mais elevado, a defesa das boas ideias, a tentativa de se criar um movimento cultural conservador e de avançar com o liberalismo clássico. Na planície é preciso cumprir basicamente um só objetivo: vencer, derrotar a esquerda.

E mesmo os meus colegas conservadores de boa estirpe, refinados e elegantes, prudentes e sábios, tenho certeza de que lá no fundo vão agradecer se alguém meio tosco à direita derrotar um socialista. Não há nada pior do que o socialismo, como os venezuelanos podem comprovar…

Rodrigo Constantino

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