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Silêncio, sofismas e muros: quando a defesa da civilização exige a voz dos corajosos
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Ainda não vi “Silêncio”, de Martin Scorcese, nem li o livro do japonês Shusaku Endo, que inspirou a obra. Pretendo fazê-lo em breve (a leitura, já que perdi parte do interesse pelo filme após ler a resenha de João Pereira Coutinho). Li um ensaio sobre o livro assinado por Gregory Wolfe, em seu A beleza salvará o mundo, e fiquei com vontade de conhecer mais sobre as provações que os católicos enfrentaram para manter sua fé em solo japonês no século XVII.

Em um trecho, fica claro o requinte de crueldade a que foram submetidos pelos japoneses, que como todo coreano bem sabe, podem superar os limites aceitáveis da maldade:

A vítima tinha seu corpo fortemente preso na altura do peito (uma das mãos era deixada livre para dar o sinal de retratação) e, em seguida era pendurada em uma forca e inserida em um poço, que geralmente continua excrementos e outras porcarias, até os joelhos. A fim de dar ao sangue algum respiro, a testa era levemente cortada com uma faca. Alguns dos mártires mais fortes viveram por mais de uma semana nesta posição, mas a maioria não sobreviveu mais do que um ou dois dias.

Claro que, pela ótica do japonês daquela época, aqueles jesuítas eram invasores indesejáveis com sua pregação religiosa. O Japão acabou se fechando de vez para o mundo pouco depois, o que durou uns dois séculos até nova abertura. Eis a diferença que vejo entre as civilizações que mais avançaram e outras que acabaram asfixiando inovações e o progresso: o grau de abertura para o mundo, para o diferente, para o novo.

Mas aqui cabe uma enorme ressalva: nem toda mudança é positiva, nem tudo aquilo que é novo é melhor, e certamente não é porque algo é diferente que deve ser respeitado ou endossado. Esse discurso relativista não me comove em absoluto. Entendo que críticos da nossa própria civilização tenham o papel de apontar para nossas falhas, de questionar até que ponto “o outro” é o bárbaro na história. Mas daí a concluir que não existe civilização e barbárie vai uma longa distância.

A civilização ocidental avançou mais, preservando elevado grau de liberdade individual, graças aos seus valores, em boa parte provenientes do cristianismo, e a essa tolerância ao diferente. Mas com limites. Se o diferente é aquele que quer destruir tudo aquilo mais caro ao próprio Ocidente, então ele não deve ser tolerado, menos ainda endossado e recebido de braços abertos.

Quando o “silêncio” nos cobra uma introspecção e um questionamento acerca de nossas próprias crenças, isso é saudável. Quando um Joseph Conrad retrata o abismo do “horror”, mostrando que a civilização pode ser suspensa a qualquer momento e que o bárbaro pode ser aquele que se julgava antes civilizado, isso é um importante alerta para quem toma a civilização como algo garantido e não enxerga a besta selvagem dentro de cada um de nós.

Mas isso não é sinônimo de abraçar uma visão multicultural que apaga os conceitos de civilização e barbárie, como querem os relativistas (normalmente do conforto e da segurança da civilização ocidental). Vi neste domingo “Arrival”, e achei a mensagem um tanto romântica e infantil. Diante da ameaça do “outro”, do desconhecido, do estranho, do alienígena, não vamos usar armas, mas sim a linguagem. Tudo muito bonito, desde que o “outro” esteja suscetível a tal abordagem… civilizada. Caso contrário, será o caminho mais rápido da nossa destruição.

No texto que Leandro Karnal escreveu no Estadão sobre o filme de Scorcese, a coisa ia bem, até chegar na conclusão desnecessária, deslocada do restante, apelativa, em que Trump se torna claramente o alvo:

Coppola e Scorsese têm em comum Nova York, o cadinho de culturas por excelência, o melting pot por definição. Nova York é a cidade que amamos nos EUA, provavelmente porque é a menos americana de todas. Quem sou eu, irlandês, russo, italiano ao atravessar o oceano e chegar a um mundo inteiramente distinto do que deixei e com valores que gritam o desafio de toda esfinge: decifra-me ou te devoro? 

Acho que os americanos e o mundo nunca tiveram tanta dificuldade e medo em responder a essa questão da aculturação que afligiu jesuítas na China e no Japão e judeus-russos nos Estados Unidos. É uma resposta complexa sobre os muitos silêncios de significado. Quando dá preguiça pensar, construímos muros. Bom domingo a todos vocês!

Nova York pode ser a cidade mais amada por Karnal ou inúmeros turistas brasileiros, mas definitivamente não é a que melhor define a América. Quem pensa isso vive numa bolha, e faz parte do grupo da elite que não entendeu a vitória de Trump, que viu com espantosa surpresa tal resultado. Os Estados Unidos são uma “nação de imigrantes”, é verdade, mas com claro DNA cultural, calcado no protestantismo anglo-saxão. Os valores do “middle America” é que sustentam o país, garantem sua relativa liberdade individual.

Os “intelectuais” podem achar lindo falar em “derrubar muros” e fazer do país inteiro um “melting pot” amorfo, sem característica cultural marcante alguma, mas não é isso que explica o sucesso americano. Basta olhar os “pais fundadores”, todos os presidentes americanos da história, as principais lideranças, para compreender que não se trata da “casa da mãe Joana”, de um caldeirão cultural sem qualquer marca registrada, onde “tudo vale”. Não foi bem assim.

E essa civilização, esses valores morais, essas crenças que representam a identidade do povo americano estão ameaçadas hoje, por bárbaros de fora do portão e também de dentro, justamente os “intelectuais” relativistas ou niilistas. A América não deveria se fechar como fez o Japão do século XVII, mas tampouco deveria escancarar suas fronteiras e abandonar seus valores em nome do “multiculturalismo”, como querem alguns, os mesmos que condenam todo tipo de muro, sem diferenciar aquele que existe para impedir a saída do próprio povo daquele que existe para evitar a entrada de qualquer um. Francisco Razzo rebateu esse sofisma com uma espetada e tanto:

Leandro Karnal, sofista que faria o grande Protágoras corar de vergonha, publicou um texto sobre Silêncio, o recente filme do Martin Scorsese.

O texto vai bem, é descritivo, faz boas relações sobre os dilemas da fé e as dificuldades de encontrar nossa identidade em um ambiente moderno e complexo como EUA.

Karnal termina perguntando: “Quem sou eu, irlandês, russo, italiano ao atravessar o oceano e chegar a um mundo inteiramente distinto do que deixei e com valores que gritam o desafio de toda esfinge: decifra-me ou te devoro?” e provoca: “Acho que os americanos e o mundo nunca tiveram tanta dificuldade e medo em responder a essa questão da aculturação que afligiu jesuítas na China e no Japão e judeus-russos nos Estados Unidos. É uma resposta complexa sobre os muitos silêncios de significado. Quando dá preguiça pensar, construímos muros.”

Eu completo: “Acho que os sofistas brasileiros nunca tiveram tanta dificuldade em agradar seus seguidores. De fato é uma resposta complexa sobre os muitos ataques feitos por eles. Quando dá preguiça de pensar e não temos coragem, apagamos fotos do nosso Facebook”.

Os ocidentais precisam de algum “silêncio” de tempos em tempos para mergulhar no abismo dentro de si, questionar suas crenças mais arraigadas, flertar com o desespero do abandono até encontrar ou reencontrar Deus, o sentido da vida, o desejo de apostar em nossa espécie, nosso mundo, nossa civilização. Também faria bem entrar em contato com as histórias como a de Conrad, para lembrar que o bárbaro pode estar bem ao lado, dentro mesmo de cada um de nós, bastando suspender os pilares civilizacionais por alguns instantes (e eles são mais frágeis do que gostaríamos de acreditar).

Mas isso não precisa significar o abandono da clareza moral, da objetividade de julgamento, quando podemos compreender o que torna uma civilização mais ou menos avançada, preservando mais ou menos liberdade para os indivíduos. E esta civilização, que é a Ocidental cristã, está sendo bombardeada por inimigos de todo tipo, externos e internos. Não seremos salvos pela “linguagem”, apenas “conversando” com o “outro”, se o outro em questão só aceita a nossa completa destruição e não valoriza os mesmos valores que nós.

Não estaremos mais seguros se derrubarmos todos os muros e deixarmos qualquer um entrar, em nome de uma pseudo-tolerância acovardada. Ao contrário: é chegado um momento em que os corajosos precisam levantar e defender o legado de nossa civilização contra seus vários inimigos. É preciso fazer esta voz ser ouvida, após o silêncio que reforça a convicção de que lutamos pelo que há de melhor, pelo que vale a pena ser preservado da destruição.

“Tudo aquilo que é necessário para o triunfo do mal é que as pessoas de bem nada façam”, alertou Edmund Burke, aquele que viu a barbárie jacobina destruir a França e quase engolir a Inglaterra. “Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos”, pontuou Karl Popper, contra os relativistas. E acrescentou, para não deixar dúvidas: “Não devemos aceitar sem qualificação o princípio de tolerar os intolerantes senão corremos o risco de destruição de nós próprios e da própria atitude de tolerância”.

Rodrigo Constantino

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