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Split: minhas “personalidades” estão divididas, mas ao menos sabem o que não querem
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Vi neste domingo “Split”, com excelente atuação de James McAvoy, o professor Xavier dos X-Men. Kevin, seu personagem, tem nada menos do que 23 personalidades distintas, e uma vigésima-quarta a caminho, a mais terrível de todas. O filme é mediano, mas mostra ao menos como pode ser perigoso tratar doenças e distúrbios graves como coisas “interessantes” ou “apenas diferentes”, uma tendência da era moderna relativista.

Mas não é desse viés psicanalítico que quero falar. Uso o filme apenas como gancho para destacar como me encontro dividido hoje. Não tenho 23 personalidades (não que eu saiba), mas habitam em mim um Thomas Paine mais revolucionário, iluminista, que quer “mudar tudo o que está aí”, e também um Edmund Burke, mais reformista e cauteloso, conservador até, que pretende, acima de tudo, preservar as boas instituições.

Cheguei a escrever uma resenha sobre este “grande debate” que define a disputa entre “progressistas” e conservadores no mundo atual, concluindo que cada vez mais me vejo como um burkeano, talvez resultado da maturidade ou da simples idade (acho no mínimo brega um quarentão bancando o revolucionário). Em outro texto, também já havia deixado evidente essa divisão interna entre Paine e John Adams, o “pai fundador” mais burkeano de todos. Tomava como base um desabafo meu no Facebook, em que digo:

Há um Thomas Paine em mim, querendo incendiar de vez o clima de revolta, para detonar esse sistema podre, cujas entranhas foram expostas de vez pela Odebrecht. Há um Thoreau em mim, pregando com José Padilha a desobediência civil. Mas há, também, um John Adams em mim, um Burke, recomendando cautela, lembrando que a revolução pode descambar para algo ainda pior, que reformas talvez ainda sejam possíveis, apesar de toda a podridão. Creio que as pessoas moderadas e conscientes estão oscilando entre esses dois polos extremos hoje. Não dá para ver tanta indecência e não ter o lado radical aguçado. Mas também não dá para conhecer a História e a natureza humana e vibrar muito com as “soluções mágicas” partindo diretamente do povo, com a intenção de “zerar a pedra” e recomeçar do nada, tabula rasa. Que tempos!

E, de fato, que tempos! As coisas, desde então, só pioraram. Afinal, o governo de transição assumiu, com uma pauta razoável de reformas necessárias para a travessia até 2018, uma “ponte para o futuro”, mas sabíamos desde o começo que era um governo frágil. Afinal, Temer era o vice de Dilma, sócio do PT, e certamente seus principais nomes estariam envolvidos na Lava Jato. Não deu outra.

Diante das recentes denúncias e gravações de Joesley Batista, dono da JBS, ficou ainda mais complicado defender essa turma. Há quem tente, e alguns por boas razões: a prudência e a cautela recomendadas por Burke, o medo da revolução incerta, do abismo. Mas até que ponto é aceitável fazer vista grossa aos absurdos vindo à tona para impedir um risco de maior incerteza?

É aí que minhas duas “personalidades” se chocam. Meu lado Paine quer ver a casa dos corruptos cair, o circo pegar fogo, para ver se das chamas e cinzas emerge uma Fênix, um novo sistema melhor. Já meu lado Burke treme de medo de golpes, do casuísmo de quem quer rasgar a Constituição e as instituições, do ambiente de anomia e anarquia produzido por essa sensação de “todos são iguais” e “tudo é podre”.

Foi assim que concluí o texto mencionado acima: “O Thomas Paine em mim quer tacar fogo no que temos, por perceber como estamos distantes de qualquer coisa que possa ser enaltecida. Mas o John Adams em mim pede prudência e cautela, pois sabe que simplesmente destruir o sistema existente não é garantia alguma de colocar algo melhor em seu lugar. Só espero que as lideranças envolvidas tenham um mínimo de consciência do que está em jogo, e não abusem a ponto de tornar inevitável a predominância do Paine em cada um de nós…”

Profético! As lideranças não tiveram consciência do que estava em jogo, e chegou o ponto em que ficou inviável defendê-las. Paulo Guedes, mais inclinado ao perfil Paine, escreveu em sua coluna de hoje no GLOBO:

‘O diabo sempre pega os últimos da fila”, alertava um ditado medieval aos que se atrasavam em suas tarefas no campo, voltando para casa ao anoitecer.

Pois bem, cansei de advertir nesta coluna a Temer, a seus ministros e a sua base parlamentar para que acelerassem a aprovação das reformas previdenciária e trabalhista antes que fossem atingidos pelas labaredas da Lava Jato.

Mas as prioridades examinadas no Congresso foram a anistia fiscal para repatriação de recursos, a “lei de intimidação” dos investigadores a pretexto de coibir “abusos de autoridade” e a reedição da anistia para os retardatários da repatriação, pauta de interesses suspeitos e menos urgentes do que o ataque decisivo ao excesso de gastos públicos e ao desemprego em massa.

O resultado desse atraso é que a incriminação premiada de Temer por Joesley Batista ameaça ruir a “Ponte para o futuro” antes mesmo que a possamos atravessar.

[…]

A Velha Política morre em 2017. As guilhotinas midiática e jurídica vêm abatendo seus praticantes ao final deste longo processo de décadas de degenerescência de nosso sistema político.

[…]

As incertezas aumentam temporariamente, mas irão desabar em horizontes mais longos sob a garantia de nossos aperfeiçoamentos institucionais. E uma Nova Política nascerá em meio às eleições em 2018.

Gostaria de compartilhar do otimismo de Guedes, que foi meu chefe e quem respeito muito, mas não sei se consigo. Analogias com a Revolução Francesa me deixam com calafrios. Afinal, tivemos o Terror das guilhotinas não como transição dolorosa para um paraíso depois, mas para a ditadura de Napoleão! Tanto sangue derramado em nome da liberdade e da razão… para isso?!

Aperfeiçoamento institucional é o nome do jogo. Precisamos construir instituições mais sólidas. Mas é preciso sobreviver para tanto, ou seja, não podemos cair no abismo venezuelano do qual não se tem mais volta. E é aí que meu lado burkeano fala mais alto: cuidado, prudência, cautela, reformas graduais, evite rupturas etc.

Enfim, estou dividido. Meu lado Paine quer intensificar as mudanças em curso, graças em boa parte à Lava Jato, para purificar de vez a política, enterrar o Antigo Regime e trazer o Novo. Meu lado Burke teme que o tiro saia pela culatra, que o clima de revolta saia do controle e uma “solução mágica” seja pregada com apoio popular, matando de vez as instituições que precisam ser fortalecidas.

Meus dois lados, Paine e Burke, brigam para saber o que realmente quero. Mas de uma coisa estou certo: sabemos, nós todos, o que não queremos de jeito algum. E isso é a volta da extrema-esquerda ao poder, para terminar de vez a destruição do Brasil, transformando-o numa espécie de Venezuela maior.

O PT não é nosso único inimigo, certamente. Mas é, sem dúvida, o pior de todos. E esse câncer precisa ser extirpado da política nacional o quanto antes. Como seria bom se Paine e Burke conseguissem se unir temporariamente para tal propósito nobre!

Voltando ao filme, a vigésima-quarta personalidade de Kevin é a mais terrível de todas, um monstro que domina as demais personalidades, subjugando-as e devorando suas vítimas inocentes. Eis o maior receio de todos: que na briga entre Paine e Burke, as forças de reação fiquem enfraquecidas e o monstro – a extrema-esquerda – consiga assumir o controle de vez. Nossas crianças seriam devoradas pelo monstro socialista…

Rodrigo Constantino

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