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A eugenia de Peter Singer, Gattaca e o direito de sofrer
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O filósofo australiano Peter Singer é o maior representante do utilitarismo nos tempos modernos. Conhecido por sua defesa dos direitos animais, coloca o sofrimento como principal medidor de quem deve ou não viver. E isso inclui seres humanos.

Seu hedonismo é total: sofredores não deveriam enfrentar o vale de lágrimas da vida. Em entrevista à revista Época dessa semana, ele defende suas bandeiras em prol dos animais e do fim da vida de humanos sofredores com base na compaixão.

“Não é por sermos humanos que nossa vida vale mais”, ele diz. Condena o “especismo”, essa mania nossa de considerar a própria espécie mais importante que as demais (não sei quanto ao leitor, mas eu dou mais valor ao homo sapiens que aos roedores).

“Não devemos preservar uma vida simplesmente porque ela é humana”, ele solta. E acrescenta: “Não há motivo para manter viva toda pessoa indiscriminadamente, sem se importar com o tipo de vida que ela levará e quanto sofrerá”.

Não pretendo, aqui, entrar em maiores detalhes no debate sobre direitos animais, eutanásia ou suicídio assistido. Não sendo uma pessoa religiosa, eu mesmo considero que a vida, em última instância, pertence a cada um, assim como o direito de pôr um fim nela. O filme Mar Adentro, com Javier Bardem, trouxe o debate à tona, e eu confesso ter simpatizado com o direito do tetraplégico de acabar com aquele sofrimento, para ele insuportável.

Mas quando pensamos em casos bem extremos como esse, talvez seja mais fácil tomar partido (lembrando que não teríamos gente como Stephen Hawking no mundo, uma perda e tanto) . O grande problema, a meu ver, é que essa visão filosófica de Singer leva a algo bem diferente: à banalização da própria vida e a uma busca dogmática da “felicidade”, doença típica da era moderna.

Qualquer sinal de sofrimento já passa a ser visto como desgraça, não como parte inerente da vida na condição humana, de autoconsciência da própria finitude. Esse hedonismo exacerbado tem sérias consequências, que já podemos verificar em nossa volta.

Temos a Geração Prozac, em que tudo deve ser “sentir-se bem”. Até o falecimento de um ente querido é compartilhado nas redes sociais de forma pueril, como mais um evento qualquer, e recebe curtidas. Todos fazem parte do happy people, aquela turma sempre pronta para sorrir e externar como é feliz, como tem uma vida perfeita.

A eugenia é outro risco dessa mentalidade. Se o sofrimento é a coisa mais abominável do mundo, que deve ser extirpada a todo custo, então vamos usar a ciência para evitar até mesmo a probabilidade de sofrimento futuro.

Quem viu o filme Gattaca, de 1997, saberá como isso pode ser assustador. A ficção científica é uma distopia, onde somente os filhos “perfeitos” têm valor e importância, pois foram “criados” para tanto. Em Admirável Mundo Novo, Huxley também trata da “ditadura da felicidade”, ainda que com a ajuda do soma, a droga que impede qualquer angústia.

Mas a angústia é fundamental ao ser humano. Sentimos angústia porque somos humanos, não autômatos condicionados a sorrir a todo momento. A dor, o sofrimento, são partes necessárias no processo de engrandecimento da vida. Não precisamos enaltecer a dor, mas tampouco acho que devemos evitá-la a todo custo.

O que me remete ao livro A Euforia Perpétua, de Pascal Bruckner, um “ensaio sobre o dever de felicidade”. Eis o texto de sua contracapa, que já se choca com esse hedonismo radical de Peter Singer:

Um novo entorpecente coletivo invade as sociedades ocidentais: o culto da felicidade. Sejam felizes! Terrível imposição à qual é difícil escapar justamente porque pretende ser para o nosso bem. Como saber se somos felizes? E o que responder aos que confessam se lamentando: ‘Eu não consigo’? É preciso recomendar-lhes terapias de bem-estar, como o budismo, o consumismo e outras técnicas para a felicidade? O que aconteceu à nossa relação com a dor num mundo onde sexo e saúde se tornaram nossos déspotas?

Chamo de dever de felicidade essa ideologia que obriga a avaliar tudo sob a ótica do prazer e da contrariedade, essa intimação à euforia que atira na ignomínia ou no mal-estar os que não aderem a ela. Perversão da mais bela das ideias: a possibilidade concedida a cada um de ser dono de seu destino e de melhorar sua existência.

E então infelicidade e sofrimento são considerados fora-da-lei, correndo o risco de terem que ser vividos no anonimato, de ressurgirem onde ninguém os espera. Nossa época conta uma estranha fábula: a de uma sociedade dedicada ao hedonismo, para a qual tudo se torna irritação e suplício.

De que maneira a crença subversiva do Iluminismo, que oferecia aos homens o direito à felicidade – até então reservado ao Paraíso dos cristãos – , pôde ser transformada num dogma?

Boa pergunta. O que filósofos como Peter Singer e tantos outros, como os existencialistas, nunca pararam para notar, foi como esta “ditadura da felicidade” acaba produzindo mais sofrimento e dor ainda! Os libertinos e relativistas morais ofereceram aos jovens de Maio de 68 uma promessa de felicidade, sem as amarras moralistas da burguesia, mas seu niilismo trouxe somente mais angústia.

O tudo pelo “aqui e agora”, o carpe diem desenfreado, o prazer momentâneo acima de qualquer outro valor, foram componentes de uma receita fadada ao fracasso. Nietzsche faz críticas interessantes ao cristianismo, quando alega que ele chafurda da miséria, alça ao patamar divino tudo aquilo que rasteja sobre a terra. É a “ética do sofrimento”: os últimos serão os primeiros.

Mas, pelo visto, o pêndulo exagerou demais para o outro lado: hoje, os “primeiros” precisam se livrar dos últimos, eliminá-los ainda no útero, ou, como Singer prega de forma abjeta, mesmo depois que nasceram. A eugenia à serviço da saúde perfeita, da felicidade plena.

Só que isso não existe. E, ao acreditar que sim, muita gente acaba colocando em risco a própria felicidade – ou o que for possível dela -, além das liberdades individuais. Um estado autoritário e paternalista vai cuidar de nossa saúde coletiva, impor estilos de vida “melhores”. O tiro sai pela culatra. Os utilitaristas radicais têm esquecido de um importante direito: o de sofrer!

É parte inexorável de nossa existência. Fechar os olhos para isso não vai mudar a realidade; vai apenas gerar cada vez mais dor no mundo, ainda que mascarada por alguma droga qualquer.

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