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A má-nutrição cultural
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Adoro o feriado de Carnaval. Não por causa do Carnaval em si, que, confesso, não tenho muita paciência para acompanhar. Mas sim pelo feriado, que me dá mais tempo para leitura. Neste ano escolhi a companhia de Theodore Dalrymple, médico britânico cuja forma de pensar aprecio bastante. O livro: Our Culture, What’s Left of It, uma coletânea de ensaios sobre a decadência moral da Inglaterra moderna.

O segundo ensaio, tema desse artigo, fala sobre a má-nutrição dos ingleses, problema que afeta de maneira desproporcional os mais pobres. A tendência, principalmente da esquerda, é acusar a pobreza em si, como se os ingleses de classe média baixa não tivessem acesso, em pleno século 21, a alimentos saudáveis por conta do preço. Erram o alvo.

Como Dalrymple argumenta, trata-se de um problema cultural. A ruptura da estrutura familiar, enaltecida pela elite mas mais comum nas classes baixas, afeta drasticamente os hábitos alimentares dessas pessoas. Muitas mães não consideram mais seu dever alimentar corretamente seus filhos até chegarem a uma idade adulta em que possam assumir esta responsabilidade. À medida que alcancem a geladeira ou a despensa, estão “livres” para se alimentar por conta própria, como desejarem.

Uma das coisas mais raras de se encontrar atualmente em certas comunidades é uma família que ainda preserve o costume de todos desfrutarem de ao menos uma refeição diária em conjunto. Mais comum é cada um por si, e a mulher, muitas vezes com namorados ou maridos que não são os pais biológicos de seus filhos, pressionada para cozinhar para eles na hora que for, sem nenhum tipo de horário fixo. Os filhos acabam prejudicados e tendo de se virar com comidas pré-cozidas ou enlatados, biscoitos e “junk food”.

As elites, mais preocupadas com as aparências de almas abnegadas perante seus pares, não têm a coragem de apontar como verdadeiro culpado aquele que faz escolhas ruins. É preferível encontrar bodes expiatórios, tais como as cadeias de supermercado, as lojas de “junk food” ou o capitalismo, que, sedento por lucro, empurra goela abaixo dessa gente porcaria (como se o ato de abrir a boca e mastigar não fosse voluntário).

É mais fácil e cômodo culpar abstrações impessoais do que indivíduos de carne e osso, especialmente se forem mais pobres. Não é politicamente correto apontar o dedo para essas pessoas, sendo preferível condenar forças além de seu controle. Os modelos de engenharia social surgem, então, como esquemas utópicos para se evitar a realidade.

Os “desertos de comida” aparecem em cena como culpados pela situação; os mais pobres seriam reféns de alimentos pré-cozidos e processados, com excesso de gordura e sal por todo lado. Como contrapartida, não possuem a oportunidade de escolher alimentos mais saudáveis. O capitalismo, naturalmente, é o grande culpado por isso tudo.

A solução: criar órgãos burocráticos de controle estatal, para inspecionar os alimentos e impor um padrão mais saudável. A miséria de uns é a oportunidade de trabalho para outros, e os burocratas se agarram a esta oportunidade com afinco. O pobre pode ser uma mina de ouro para alguns.

Como coloca Dalrymple, se os “desertos de comida” realmente existem, em uma época de transporte mais barato e abundância de mercados para todos os bolsos e gostos, eles se devem à demanda, não a algum maquiavelismo por parte da oferta. E a demanda é um fenômeno cultural.

A “intelligentsia” esquerdista, porém, evita constatar isso como o diabo evita a cruz. Fazê-lo, afinal, seria reconhecer que as mudanças culturais, estimuladas pela própria “intelligentsia” ao longo das últimas décadas, foram cúmplices do problema atual. Em plena era de abundância, o mundo desenvolvido enfrenta o grave problema de má-nutrição. Como pode? Ora, é tudo culpa dos supermercados capitalistas!

As mudanças nos costumes e nas morais que a esquerda vem promovendo desde 1960 não podem ter ligação alguma com o problema. Admitir isso seria doloroso demais para essas elites. Tampouco essas elites vão desejar o fardo de ter que responsabilizar os mais pobres por suas péssimas escolhas, por suas famílias desestruturadas, por seus hábitos pouco saudáveis.

Não pega nada bem no meio refinado dos “ungidos”, que precisam ver os pobres sempre como vítimas do “sistema”, para que possam posar de seus salvadores. Não importa que, agindo assim, essas elites estejam chamando os pobres de autômatos, de seres robotizados incapazes de fazer escolhas melhores, o que os colocaria como inferiores aos demais da espécie humana.

Condenar os supermercados é melhor, pois ainda destaca a importância do papel dessas elites. Aumenta a demanda por mais intervenção dos burocratas na sociedade, delega aos “engenheiros sociais” um poder ainda maior para controlar tudo de cima para baixo.

É assim que, segundo Dalrymple, a questão da má-nutrição segue escalando em uma época com comida disponível em abundância para todos os bolsos. Um casamento nefasto entre elite arrogante e autoritária e pessoas que se recusam a assumir as rédeas das próprias vidas. Trata-se, acima de tudo, de uma má-nutrição cultural.

Rodrigo Constantino

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